sábado, 29 de maio de 2010

O jornalismo e as “palavras de poder” do poder

Vocês estão vendo comé o negócio “jornalístico”? Pra garantir “o furo”, o Viomundo publicou uma tradução MUITO RUIM. Queimou o texto (interessante) do Fisk. É texto difícil de traduzir. Só quem sabe, sabe o quanto são difíceis de traduzir as coisas que se escrevem SOBRE as palavras. Difícil.

Fiz o melhor que pude. Não me impedi de interferir no texto -- eu SEMPRE interfiro. Como em tantas ocasiões na vida, a fidelidade servil, em matéria de tradução, trai muito mais que eventuais adulteriozinhos sem importância nenhuma.

Gostei de traduzir, distribuo. Caia

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25/5/2010, V Fórum Anual Al-Jazeera, Robert Fisk [Conferência]

Poder e mídia não é caso apenas de relações cordiais entre jornalistas e líderes políticos, entre editores e presidentes. Não é assunto tampouco do relacionamento parasitário-osmótico entre jornalistas pressupostos honrados; nem trata do nexo de poder que liga a Casa Branca e o Departamento de Estado e o Pentágono, ou Downing Street e o ministério inglês de Relações Estrangeiras. No contexto do Ocidente, poder e mídia é caso de palavras – e do uso das palavras. Poder e mídia é assunto de semântica.

Trata-se aí do emprego de frases e orações e de onde elas vêm. E do abuso da história. Trata-se sempre, também, de nossa ignorância da história.

Cada vez mais, atualmente, nós jornalistas nos tornamos prisioneiros de uma língua do poder.

Isso acontece porque já não se estuda linguística? Acontece porque os laptops “corrigem” a grafia, aparam os ataques à gramática, de tal modo que todas as sentenças soam exatamente iguais às sentenças dos governantes? Acontece porque os editoriais jornalísticos hoje soam como discursos políticos? Permitam-me falar um pouco, e mostrar-lhes o que quero dizer com tudo isso.

Já há duas décadas, lideranças políticas nos EUA e na Grã-Bretanha – e em Israel e na Palestina usam a expressão “processo de paz” para descrever um acordo sem esperanças, inadequado, desonroso que permite que EUA e Israel dominem cada palmo de terra que, por direito, pertence a um povo que sobrevive sob ocupação.

Questionei a expressão pela primeira vez, quando nasceu, na época de Oslo. – Mas como esquecemos tão facilmente que o próprio encontro de Oslo foi, ele mesmo, conspiração sem qualquer base legal? Pobre velha Oslo, sempre penso eu! O que fez Oslo para merecer tanta vergonha? Foi a Casa Branca, não Oslo, quem inventou aquele acordo duvidoso, sem sentido, absurdo – pelo qual se selou o destino de refugiados, fronteiras, colônias exclusivas para judeus – de forma a que nunca mais se discutissem essas questões e se impedisse qualquer negociação.

Esquecemos. Esquecemos que foi no gramado da Casa Branca – embora, sim, nunca esqueçamos a imagem – que Clinton citou o Corão e Arafat disse “Obrigado, obrigado, Senhor Presidente.” E depois? Como classificamos esse teatro de horrores? “Um momento histórico.” Foi mesmo? Foi momento histórico?

Lembram-se do que disse Arafat, daquele momento? Que teria sido “A paz dos bravos.” Mas não lembro de ninguém que lembrasse que essa mesma “A paz dos bravos” foi expressão usada originalmente pelo general de Gaulle, falando do fim da guerra da Argélia. Os franceses haviam perdido a guerra. Ninguém, que me lembre, decifrou a extraordinária ironia daquele dia.

Hoje, o jogo é o mesmo. Nós, jornalistas ocidentais – sempre instrumentos nas mãos dos patrões – não nos cansamos de repetir que nossos alegres generais no Afeganistão dizem que aquela guerra só será vencida com uma campanha para ganhar “corações e mentes”. Não lembro de alguém ter perguntado a pergunta mais óbvia: “Não disseram exatamente a mesma frase, sobre os civis vietnamitas na guerra do Vietnã? Aquela! Mais uma guerra que perdemos, nós, o ocidente?”

E em todo o ocidente jornais e jornalistas repetem hoje – sobre o Afeganistão – a expressão “corações e mentes”, em nossos boletins e reportagens, como se houvesse outro dicionário e outras definições; como se aquela expressão não fosse símbolo de derrota, pela segunda vez em 40 anos, não raras vezes usada hoje pelos mesmos soldados que difundiram a mesma tolice – quando eram mais jovens – no Vietnã.

Quem ainda duvide, examine as palavras que todos os jornalistas temos repetido, reproduzidas dos discursos dos militares norte-americanos.

Quando descobrimos que “nossos” inimigos – a al-Qaeda, por exemplo, ou os Talibãs – detonaram mais bombas e atacaram mais vezes do que o habitual, dizemos que houve “um pico de violência”. Ah, sim, um “pico”!

“Um pico de violência”, senhoras e senhores, é expressão usada pela primeira vez, dizem meus arquivos, por um general brigadeiro na Zona Verde em Bagdá em 2004. Quando repetimos a expressão, nós a extraímos do contexto temporal, tornamo-la eterna, e a relançamos ao ar como expressão nossa. Repetimos, literalmente, expressão criada para nós pelo Pentágono. “Pico”, é claro, é coisa repentina, que sobe e imediatamente desce e desaparece. Quem diz “um pico de violência”, evita falar de “maior violência” –, porque “maior violência” fala de violência que cresce sempre e nada sugere que diminua e desapareça, antes, o contrário.

Agora, outra vez, quando os generais norte-americanos falam de repentino aumento no contingente de soldados, para atacar Fallujah ou o centro de Bagdá ou Candahar – movimentação em massa de soldados, empurrados às dezenas de milhares para dentro de países muçulmanos –, dizem que seria “um surge”, “um avanço”, como uma tsunami ou qualquer outra espécie de fenômeno natural, cujos efeitos podem ser devastadores. Os tais “surges”, esses “avanços”, isso sim – para usar palavras sérias de jornalismo sério –, são o que são: reforços. E só se enviam reforços, quando os exércitos estão perdendo guerras. Pois as televisões e jornais, rapazes e moças, continuam a falar de “surges”, de “avanços”, sem nada explicar! Mais uma vitória do Pentágono.

Simultaneamente, o “processo de paz” fracassou. Então, nossos líderes – “principais players”, como dizem os jornais e as televisões – tentam fazê-lo funcionar novamente. Então, o processo tem de “ser posto nos trilhos”. Havia lá uma ferrovia, lembram? Os vagões saíram dos trilhos. Então, basta repô-los “nos trilhos”. Quem primeiro falou de pôr coisas em trilhos, no Oriente Médio, foi o governo Clinton; dali passou para os discursos israelenses e, dali, para a BBC.

Mas houve problemas quando o “processo de paz” já deveria estar andando “nos trilhos”, mas outra vez empacou. Então produzimos um “mapa do caminho” – desenhado por um Quarteto e liderado pelo velho Tony [o “Amigo de Deus”] Blair, o qual – e que obscenidade histórica! – é referido hoje como “emissário da paz”.

O “mapa do caminho” tampouco está funcionando. E agora, pelo que vejo, o velho “processo de paz” está de volta aos nossos jornais e telas de televisão. Há dois dias, na CNN, um desses entediantes velhotes que apresentadores de televisão chamam de “especialistas” – “Voltaremos a qualquer momento com mais notícias” – contou ao mundo que o “processo de paz” está sendo “posto nos trilhos”, porque se iniciaram “conversações indiretas” entre israelenses e palestinos.

Meus amigos, não estamos falando de clichês e lugares-comuns. Estamos falando de jornalismo fantasioso, obsceno, mentiroso. Não há qualquer luta entre o poder e a mídia. Mediante a linguagem, mídia e poder misturaram-se: são hoje uma e a mesma coisa. Somos eles.

Talvez o problema esteja em que os jornalistas já não pensamos por nossa cabeça, porque já não estudamos nem lemos livros. Os árabes lêem muito – e não estou falando da taxa de analfabetismo entre árabes. Estou dizendo que os árabes lêem livros. Não saberia dizer com certeza se o ocidente ainda lê livros. Muitas vezes acontece de eu ditar mensagens por telefone e perceber que a moça que anota não sabe escrever. Demora dez minutos para anotar uma mensagem de menos de 100 palavras. Não sabe ortografia.

Outro dia, estava num vôo de Paris a Beirute – tempo estimado da viagem, três horas e 45 minutos – e a mulher ao meu lado lia um livro francês sobre a História da II Guerra Mundial. Virava página a cada meio segundo. Antes de chegarmos a Beirute, tinha lido o livro inteiro! Percebi que não lia: surfava pelas páginas. Já não conhece o que chamo de “leitura profunda”. E esse é um dos nossos problemas, entre os jornalistas. Acho que desaprendemos de ler em profundidade. Usamos as primeiras palavras que aparecem à mão...

Vejam aqui outro caso de covardia dos jornalistas, que me faz trincar meus dentes de 63 anos, depois de 34 anos de mastigar homus e tahine no Oriente Médio.

Dizem-nos – vários analistas e análises repetem sempre – que o que encontramos no Oriente Médio seriam “narrativas que competem entre elas”. Engraçado. Não há justiça nem injustiça, apenas algumas pessoas que contam histórias diferentes. E, agora, a imprensa britânica só fala de “narrativas que competem entre elas”. A expressão é uma espécie – ou subespécie – da diluição da linguagem da antropologia. Assim se risca do mapa a possibilidade de lá haver um povo que sobrevive sob ocupação, no Oriente Médio. Ao mesmo tempo, apaga-se do mundo a possibilidade de haver exército ocupante. Não se cogita de justiça e injustiça, de opressor e oprimido. Só há competição amigável entre “narrativas”, como um jogo de futebol. Tudo claro e feito por regras, porque os lados estariam – mas não estão – “competindo”. Como se oprimidos e opressores fossem dois times de futebol. Por isso, os dois “times” mereceriam igual tratamento, mesmo espaço (nos jornais) e mesmo tempo (na televisão), em todas as matérias.

Assim, o que é ocupação converte-se em “disputa”. Um muro de apartheid converte-se em “cerca” ou “barreira de segurança”. A colonização pelos israelenses de terra árabe, ilegal sob todos os aspectos, se se considera a lei internacional, converte-se em “assentamentos”, “postos de controle de fronteira”; quarteirões de exclusão racial, guetos, convertem-se em “bairros árabes”.

Ninguém se surpreenderá com saber que foi Colin Powell, no tempo em que era estrela pop, no posto de secretário de Estado, mas sem poder, de George W. Bush, quem recomendou que os diplomatas dos EUA operantes no Oriente Médio passassem a referir-se às terras palestinas ocupadas como “terras disputadas”. Grande parte da mídia norte-americana deu-se por muito satisfeita e pôs-se a repetir: nunca mais “territórios ocupados”; dali em diante, só “territórios disputados”.

Consideremos a questão das “narrativas em disputa”. Claro que já não há qualquer disputa de narrativas entre os militares dos EUA e os Talibãs. E, quando houve, todos sabemos que o ocidente perdeu.

Dou-lhes um adorável exemplo pessoal de como se desfazem as tais “narrativas em competição”. Mês passado, fiz uma palestra em Toronto, para marcar o 95º aniversário do genocídio de armênios de 1915 – assassinato em massa de 1,5 milhões de cristãos armênios por exército e milícias turco-otomanas. Antes da palestra, fui entrevistado pela rede Canadian Television, CTV, dona também dos jornais Toronto Globe e Mail. Desde o início, percebi o mal-estar da entrevistadora. Há enorme comunidade de armênios, no Canadá; e há também enorme comunidade de turcos em Toronto. Como os turcos e os jornais Globe e Mail não se cansam de repetir “não há unanimidade [na questão do genocídio]”. Então... a entrevistadora só falava de “terrível massacre”.

Claro que percebi imediatamente o que se passava. A moça não podia chamar o genocídio de “genocídio”, para não desagradar a comunidade turca. Ao mesmo tempo, era muito evidente que “terrível massacre” – sobretudo pelos cartazes do cenário, com fotos de montanhas de cadáveres de armênios – não era expressão suficiente para aquele específico caso de genocídio de 1,5 milhões de armênios. É muito estranho. Se há “terrível massacre”, há massacres não-terríveis... dos quais as vítimas se safam só com arranhões? Mais uma tautologia mal-intencionada.

No final, contei essa história de covardia dos jornalistas ao público (armênio) que assistia à palestra, entre os quais executivos da CTV. Uma hora depois de eu ter acabado de falar, meu anfitrião armênio recebeu mensagem por SMS, de um repórter da CTV. “Defecar na CTV foi péssimo” – dizia a mensagem. Duvido muito, pessoalmente, que a CTV admitisse a palavra “defecar” em entrevista. Acontece o mesmo com “genocídio”. De fato, se houve “narrativas em competição”, uma já ganhou e outra já perdeu. Hoje, todas as narrativas são a mesma narrativa.

Mas entre nós continuamos a falar a linguagem do poder – as mesmas palavras-holofote, as mesmas frases-holofote. Quantas vezes ouvi repórteres ocidentais falando sobre “combatentes estrangeiros” no Afeganistão! Referem-se, claro, aos vários grupos árabes que, supostamente, colaboram com os Talibãs. Ouvimos a mesma história, sem tirar nem por, sobre o Iraque. Sauditas, jordanianos, palestinos, combatentes chechenos, claro. Os generais chamam todos esses de “combatentes estrangeiros”. E imediatamente todos os repórteres ocidentais nos pomos a repetir: “combatentes estrangeiros”. Qualificá-los como “combatentes estrangeiros” é declarar que seriam força invasora. Pois nunca, jamais, nem uma vez, ouvi alguma grande rede de televisão ocidental fazer referência ao fato de que há, no mínimo, 150 mil “combatentes estrangeiros” no Afeganistão. E que a maioria deles, senhoras e senhores, vestem uniforme de combate dos EUA e da OTAN!

Acontece o mesmo com essa daninha expressão “Af-Pak” – racista, além de politicamente desonesta – que todos os jornalistas usam: foi criada pelo departamento de Estado dos EUA, no dia em que Richard Holbrooke foi nomeado representante especial dos EUA no Afeganistão e no Paquistão. Mas a expressão exclui a palavra “Índia”, cuja presença e cuja influência no Afeganistão são partes vitais da história. De fato, quem diga “Af-Pak” e apague a Índia, apaga também toda a crise da Caxemira; é como se a Caxemira não existisse no sudeste asiático. Ao mesmo tempo, a expressão impede o Paquistão de ter voz ativa na política local dos EUA sobre a Caxemira. Afinal, Holbrooke foi coroado enviado ao “Af-Pak” e expressamente proibido de discutir a Caxemira. Assim, quem diga “Af-Pak” apaga do mundo a tragédia da Caxemira (excesso de “narrativas em competição”, sabe-se lá?). E nós, jornalistas, também a apagamos, cada vez que falamos de “Af-Pak”. Deu certo. A palavra foi criada para que nós a usássemos. Estamos fazendo exatamente o mesmo serviço que faz o departamento de Estado dos EUA.

Consideremos agora o seguinte. Nossos líderes adoram História. Adoram, sobretudo, a II Guerra Mundial. Em 2003, George W. Bush pensou que, além de GWB, era também Churchill. É verdade. Bush passou toda a guerra do Vietnã defendendo os céus, no Texas, contra ataques dos vietcongs. Mas então, em 2003, alinhou-se aos “pacificadores” que não queriam saber de guerra contra Saddam, o qual, é claro, era chamado “o Hitler do [rio] Tigre”. Os pacificadores eram os britânicos, que não quiseram combater a Alemanha nazista em 1938. Blair, é claro, também experimentara o colete e o paletó de Churchill, para ver se lhe serviam. Mas, com ele, nada de “pacificar”. Os EUA eram os mais antigos aliados da Grã-Bretanha, Blair proclamou. Os dois, Bush e Blair lembraram aos jornalistas que os EUA haviam estado ombro a ombro ao lado da Grã-Bretanha, em momento de grande aperto, em 1940.

Mas nada disso era verdade.

O mais antigo aliado da Grã-Bretanha não eram os EUA, mas Portugal, estado fascista que se manteve neutro durante a II Guerra Mundial. Em todo o mundo, só The Independent, meu jornal, desmascarou essa tolice.

Nem algum EUA lutou ombro a ombro ao lado dos britânicos na hora de maior necessidade, em 1940, quando Hitler ameaçou invadir e a Força Aérea alemã bombardeou Londres. Não. Em 1940 os EUA curtiam um proveitoso período de neutralidade. Só se uniram à Grã-Bretanha, na guerra, depois de o Japão ter atacado a base naval dos EUA em Pearl Harbour, em dezembro de 1941. Epa!

Li outro dia que, em 1956, Eden [primeiro-ministro inglês, na crise de Suez] chamou Nasser de “Mussolini do Nilo”. Errado. Erro grave. Nasser era amado pelos árabes, não odiado, como Mussolini, pela maioria dos africanos, sobretudo pelos árabes líbios. Ninguém, na imprensa britânica percebeu o erro. Depois, todos vimos o que aconteceu em Suez, em 1956.

A verdade é que, no que tenha a ver com a história, os jornalistas deixamos que presidentes e primeiros-ministros nos levem pelo cabresto.

Hoje, quando estrangeiros arriscam-se pelo mar para levar combustível e alimentos aos palestinos famintos de Gaza, nós jornalistas deveríamos lembrar nossos ouvintes, leitores e telespectadores que um dia, há muito tempo, EUA e Grã-Bretanha partiram para levar socorro (combustível e alimentos) a um povo sitiado; e soldados ingleses e norte-americanos morreram pelo caminho. Aquela população fora murada por um exército brutal que planejava matar de fome os inimigos, rendê-los pela fome e derrotá-los. O exército era russo. A cidade sitiada, Berlim. O muro viria depois. Os alemães, então sitiados pelos russos, haviam sido inimigos de EUA e Grã-Bretanha, apenas três anos antes. Mesmo assim, enfrentamos os russos e libertamos Berlim.

Considerem Gaza, hoje. Que jornalista ocidental – e nós adoramos paralelismos históricos! –, até hoje, se lembrou do que houve em Berlim em 1948, tão sitiada, então, quanto Gaza, hoje?

Ainda mais recentemente, Saddam teria “armas de destruição em massa” – hoje, só a sigla, em inglês, já é manchete: “WMD!” [ing. Weapons of Mass Destruction] – mas, claro, nunca teve. A imprensa dos EUA teve de desculpar-se, envergonhada. Como pudemos enganar-nos tanto, nós mesmos, o New York Times perguntou? E concluiu: porque não fizemos suficiente oposição ao governo Bush, antes da invasão.

E agora o mesmo jornal começa a fazer soar – suavemente, bem suavemente – os tambores pró-guerra ao Irã. O Irã esconde armas de destruição em massa, “WMD!” E depois da guerra, se houver guerra, mais autocondenação, se não houver projetos para construir bombas atômicas.

Mas o aspecto mais perigoso de nossa nova guerra semântica, e de o jornalismo usar as mesmas palavras de poder do poder – verdade, sim, que nem guerra é, porque o jornalismo praticamente já se rendeu integralmente ao poder –, é que essa rendição isola os jornalistas de seus telespectadores e leitores e ouvintes. Eles não são estúpidos. Eles entendem. Conhecem as palavras, em muitos casos – temo eu –, melhor que os jornalistas. E história. Sabem que o vocabulário do jornalismo já está contaminado pela fala de generais e presidentes, das chamadas “elites”, pela arrogância dos “especialistas” do Brookings Institute ou da Rand Corporation ou desses think-tanks (que costumo chamar “tink thanks”*). Assim aconteceu que o jornalismo tornou-se parte da linguagem de poder do poder.

Vejam, por exemplo, algumas dessas palavras perigosas, em inglês [porque são perigosas em inglês, quando aparecem sem tradução] (e em português [porque também são perigosas em português, quando aparecem traduzidas**):

  • power players = atores de poder, atores fortes;
  • activism = ativismo, militância, em alguns casos, até, “guerrilha”;
  • non-state actors = atores não estatais (empresas privadas, ONGs, grupos guerrilheiros, tribos, clãs, a Fiesp, a Febraban, a Rede Globo, o Instituto Milênio, a ANJ etc.);
  • key players = atores-chave, atores principais, às vezes “as superpotências” (do tempo da Guerra Fria) ou “as potências nucleares” (sempre);
  • geostrategic players = atores a considerar em análises geoestratégicas, ou que têm interesses geoestratégicos;
  • narratives = narrativas (ninguém sabe, mas muitos pensam que sabem, o que significa “narrativa”, que é conceito complexo);
  • external players = atores externos (variam, conforme o caso e o ponto de vista);
  • peace process = processo de paz (quase sempre usado para designar “processo de guerra”);
  • meaningful solutions = soluções significativas (o que é pleonasmo, se a solução significar alguma coisa, ou é contradição em termos, se a ‘solução’ nada significar);
  • Af-Pak = um recorte arbitrário do mundo, que reúne Afeganistão e Paquistão, mas exclui a Índia e, assim, apaga do mapa a Caxemira; e
  • change agents (sejam quem forem essas sinistras criaturas) = agentes de mudança, que mudem alguma coisa, quando mudam; e mesmo que não mudem nada.

Não sou crítico regular da rede Al Jazeera. Sempre me deu liberdade para falar à vontade. Há poucos anos, quando Wadah Khanfar (hoje diretor geral da Al Jazeera) era o homem da rede em Bagdá, os militares dos EUA iniciaram campanha de difamação contra a redação de Wadah; diziam, mentirosamente, que Al Jazeera seria aliada da Al-Qaeda, porque recebia fitas de vídeo sobre ataques às forças dos EUA. Fui a Fallujah para verificar. O que Wadah dizia era 100% verdade. A Al-Qaeda enviava-lhes as fitas clandestinas sem qualquer aviso. De repente, lá estavam as fitas metidas na caixa de correio. Os norte-americanos mentiam. Wadah está, é claro, à espera do que o futuro nos reserve.

Bem. Tenho de dizer-lhes, senhores e senhoras, que todas essas “palavras perigosas” da lista que lhes apresentei – de “atores-chave” a “narrativas” e “processo de paz” até “Af-Pak” – ocorrem todas, nas nove páginas do programa que Al Jazeera preparou para esse fórum.

Não estou condenando a rede Al Jazeera por isso. Porque esse vocabulário não é coisa que se escolha por concordarmos com um lado das questões. É como uma infecção que nos ataca todos, por contágio. Eu mesmo já usei “processo de paz”, embora sempre entre aspas, recurso que não existe para a televisão. Mas, sim, é um andaço, uma epidemia, coisa que se pega por contágio.

E quando usamos essas palavras, nos integramos ao poder e às elites que controlam nosso mundo e que não temem qualquer “fiscalização” pela imprensa. A rede Al Jazeera é das redes de televisão que mais fez, que eu saiba, na linha de fiscalizar o poder, no ocidente e no Oriente Médio. (Estou falando de “fiscalizar” o poder, não de “desafiar o poder”, no sentido de enfrentar e derrotar, ou no sentido de resolver um problema, como se usa hoje, e como costuma dizer o general McCrystal: “muitos me desafiam”, no sentido de “enfrento muitos desafios”, não no sentido de “muitos me fiscalizam”.***)

Como se escapa dessa doença contagiosa? Todo o cuidado é pouco, contra os corretores de ortografia e gramática dos nossos laptops e contra os sonhos dos subeditores monossilábicos. Parem de acreditar na Wikipedia. E leiam livros – livros de verdade - com páginas de papel, que admitem leitura em profundidade. Livros de história, sobretudo.

Al Jazeera está cobrindo bem o pequeno comboio de barcos que partiu em direção a Gaza. Não creio que seja um bando de odiadores de Israel. Entendo que o comboio internacional está a caminho de Gaza, porque as pessoas lá embarcadas – de várias nacionalidades – estão tentando fazer o que líderes supostamente humanitários não fazem. Estão levando comida e combustível e material cirúrgico e hospitalar a famintos e doentes. Em qualquer outro contexto, os Obamas e Sarkozys e Camerons estariam competindo para serem os primeiros a chegar com ajuda humanitária, ou os marines dos EUA, ou a Royal Navy britânica, ou as forças francesas. – Na Somália, Clinton foi o primeiro a chegar. Será que Blair, o temente a Deus, não acredita em ‘intervenções’ humanitárias no Kosovo e em Sierra Leone?

Em circunstâncias normais, Blair talvez, até, já tivesse passado meia perna por cima da fronteira.

Mas, não. Ninguém se atreve a ofender os israelenses. Portanto, pessoas comuns, cidadãos comuns estão tentando fazer o que os líderes não conseguem fazer. Foram abandonados pelos líderes. Os líderes desertaram e os abandonaram.

E a imprensa? A televisão mostra hoje documentários da batalha por Berlim? Não. Ou mostra fotos de Clinton, sorridente, na luta para “resgatar” os famintos da Somália? Ou a “intervenção” humanitária de Blair nos Bálcãs, para que ouvintes e telespectadores – e as pessoas, lá, naqueles barcos – jamais esqueçam que “imprensa” é assunto de hipocrisia em escala massiva.

Mas não, não! Claro que não! Preferimos a expressão “narrativas em competição”. Poucos políticos desejam que aquele comboio que viaja para Gaza consiga atracar no destino – seja o fim bem-sucedido, farsesco ou trágico. Só acreditamos em “processo de paz”, “mapa do caminho”. Mantenham bem alto o muro que cerca os palestinos. E os “atores-chave” que os tirem de lá, se forem capazes.

Senhoras e senhores, não sou o “palestrante-chave” dessa seção desse Fórum. Estou aqui como convidado. Obrigado pela paciência com que me ouviram.

O texto original, em inglês, pode ser lido em:

Journalism and "the words of power"

Ou logo após as Notas de tradução

Notas de tradução

* Intraduzível. Há aí um trocadilho entre “think-tanks” [alguma coisa como “usina (tanque) de pensamentos/ideias”) e “tink-thanks”, uma onomatopéia, tin-t[z]ãn, mais barulho que significado, com um toque de agradecimento servil, subalterno. É intraduzível, mas é necessário tentar traduzir (NT).

** Aqui interfiro um pouco na tradução, para não perder completamente o discurso (talvez se deva dizer “a narrativa” pessoalíssima) do autor (NT).

*** No original (porque interferi nesse parágrafo, difícil de traduzir): “Al Jazeera has done more than any television network I know to challenge authority, both in the Middle East and in the West. (And I am not using 'challenge' in the sense of 'problem', as in '"I face many challenges," says General McCrystal.')

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