terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O significado de um Irã nuclear

18/12/2010, Chan Akya, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Depois que o Conselho de Segurança da ONU impôs novas sanções ao Irã semana passada, depois de o país ter-se recusado a suspender o enriquecimento de urânio, cresceram em todo mundo os temores de que seja possível um conflito nuclear no Oriente Médio que envolveria EUA, Israel, Irã e talvez vários países árabes entre os quais a Arábia Saudita. 

Embora o deslizamento rumo à guerra talvez seja inevitável ao longo de 2011, esse artigo elabora sobre as necessidades estratégicas do outro lado da equação, a saber, a questão de avaliar o problema que haveria se se constituísse um Irã nuclear, na região considerada a mais volátil do mundo. 

Não parece haver dúvida de que o telegrama mais interessante, de quantos WikiLeaks publicou até agora é o que expôs a repetida insistência do rei saudita, exortando os EUA a se retirarem do Iraque e voltarem-se na direção do Irã. 

Em matéria da Reuters sobre a história publicada por WikiLeaks dia 29/11:

O rei Abdullah da Arábia Saudita repetidas vezes exortou os EUA a “cortar a cabeça da serpente” com ataques militares para destruir o programa nuclear iraniano, segundo telegrama diplomático dos EUA publicados por WikiLeaks. 
Cópia do telegrama datado de 20/4/2008 foi publicado no website do  New York Times no domingo (...). A comunicação secreta entre a embaixada dos EUA em Riyadh e Washington mostrou que os sauditas temem a crescente influência do Irã xiita na região, sobretudo no vizinho Iraque. 
Os Estados Unidos repetidas vezes disseram que a opção militar ‘está sobre a mesa’ mas, ao mesmo tempo, os comandantes militares norte-americanos têm dito bem claramente que a consideram como um último recurso, por temer um conflito generalizado no Oriente Médio.
O telegrama de abril de 2008 detalhava encontro entre o general David Petraeus, principal comandante militar dos EUA no Oriente Médio; o então embaixador dos EUA no Iraque, Ryan Crocker;  o rei Abdullah; e outros príncipes sauditas.
Na reunião, o embaixador saudita nos EUA, Adel al-Jubeir, “lembrou as frequentes exortações feitas pelo rei aos EUA para que atacassem o Irã e, desse modo, pusessem fim ao seu programa de armas nucleares” – dizia o telegrama. 
“O rei disse a vocês que cortem a cabeça da serpente” – Jubeir disse aos americanos.

Esse sentimento desperta algumas questões óbvias na mente de qualquer um que não seja subalterno no establishment saudita nem seja parte do grupo pró-petróleo de George W Bush/Dick Cheney.

Para começar, de que serpente o rei Abdullah estaria falando? 

Há inúmeras possibilidades quanto à natureza dessa serpente. Uma delas é que o rei tenha-se referido aos persas, mais provavelmente às massas persas, como “a serpente”; e ao Irã como “a cabeça da serpente”. Apesar de essa ideia poder ser facilmente confirmada pela ortodoxia saudita/wahhabista em relação ao Islã e sua evolução nos últimos mil anos, nada há aí que faça algum sentido também para os EUA. Os EUA são (presumivelmente) neutros em face das várias denominações do Islã, no sentido de que já estão em guerra em duas importantes áreas predominantemente sunitas (norte do Iraque e Afeganistão) e também estão em guerra em regiões xiitas no sul do Iraque, embora desde a era Reagan tenha havido mais animosidade contra o Irã xiita. 

Serpentes na areia 

Haveria algo deliciosamente autointeressado nas exortações dos sauditas para que os EUA atuem contra o Irã para evitar que floresça uma nova potência no Oriente Médio, sobretudo se os EUA se interessassem por fazer outra pergunta, mais difícil, sobre o papel de “outras serpentes”. 

Em palavras mais claras, falo da “serpente” do terrorismo religioso, particularmente da juventude insatisfeita e revoltada em reinos predominantemente sunitas como a Arábia Saudita, o Kuwait et alii; e também onde reine a anarquia, como no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão. Não está ainda absolutamente claro se o inimigo natural desses jovens seriam os norte-americanos; o mais provável é que vejam como inimiga, de fato, toda a ordem estabelecida no Oriente Médio, onde a riqueza das nações é controlada por um punhado de monarquias senis. 

Essa serpente do terrorismo religioso é uma das serpentes que mordeu os EUA no 11/9. A maioria dos sequestradores dos aviões do 11/9 eram de origem saudita e, apesar de nominalmente seguirem a orientação de Osama bin Laden, ainda assim há bons argumentos a favor de serem movidos, também, pelo desencanto face à Arábia Saudita antidemocrática e à inerente hipocrisia do wahhabismo, num país que consumiu quase toda a vida em servil deferência aos norte-americanos. 

Com medo ante o pesadelo tático de ser obrigado a enfrentar centenas, se não milhares, desses jovens, EUA e Europa escolheram a via de sustentar aquelas monarquias em ruínas, desde que elas próprias se encarregassem de atacar e reprimir os seus respectivos jovens. Difícil imaginar negócio mais estúpido, para dizer o mínimo. 

Situação sustentável exigiria que se induzisse ampla mudança de regimes no Oriente Médio, que se expulsassem as monarquias corruptas e fracassadas, para que pudessem ser substituídas por líderes islâmicos capazes de conduzir seus países por uma via orientada para o desenvolvimento. Para assegurar que uma nova geração de líderes no Oriente Médio não viesse a ser tentada pela possibilidade de atacar os EUA ou Israel, sempre seria necessário manter algum ponto “natural” de equilíbrio na região – e esse papel, em tese, teria de caber ao Irã. 

Como estado nominalmente democrático, com forte associação teológica com a filosofia xiita, o potencial que o Irã tem para romper a estagnação no Oriente Médio é bem conhecido desde 1979. 

Os EUA, associados a vários reinos sunitas ajudaram Saddam Hussein em sua guerra assassina contra o Irã, ela própria guerra de sobrevivência para comunidade sunita, minoritária no Iraque, contra uma maioria xiita plural da população. 

As atrocidades que Saddam e seus asseclas cometeram contra a população xiita no sul do Iraque são bem conhecidas. O Irã também sofreu centenas de milhares de mortes de civis; atrocidades cometidas pelo regime sunita do Iraque, que nem europeus nem norte-americanos jamais sequer cogitaram de processar, julgar, condenar e indenizar; esses ditos campeões dos direitos humanos. 

A Austrália entendeu melhor 

Comparem-se a posição dos sauditas e a posição da Austrália, consistente aliada dos EUA e do Reino Unido durante os últimos 60 anos. Como a agência Reuters noticiou dia 13/12: 
EU
A Austrália enfrenta um impasse ante seu principal aliado de segurança, os EUA, em relação ao Irã. Telegramas publicados por WikiLeaks dão conta de que a Austrália tem declarado que o Irã não é “rogue state” [estado bandido] e que seu programa nuclear tem função de proteção, não de ataque. Os documentos publicados na 2ª-feira pelo jornal Sydney Morning Herald também revelam que a organização superior de segurança australiana acredita que Teerã entende que só “uma grande barganha” com os EUA pode assegurar condições de preservação da segurança nacional iraniana. 
Mas o Office of National Assessments (ONA) partilha os temores de Washington de que a insistência dos iranianos em trabalhar para construir armas nucleares pode levar a guerra convencional ou nuclear, e observa que o risco de conflito entre Israel e o Irã é a principal ameaça à estabilidade do Oriente Médio. 
O ONA também manifestou preocupações de que a proliferação nuclear no Oriente Médio venha a tomar a direção das nações do sudeste da Ásia, que poderão decidir-se a investir mais em suas próprias capacidades nucleares. “É erro classificar o Irã como ‘rogue state’” – disse o então chefe da ONA  Peter Varghese aos EUA, em documento citado nos telegramas diplomáticos dos EUA enviados de Canberra. Os telegramas diziam que a ONA trabalhava para construir uma visão equilibrada de Teerã como player diplomático sofisticado, não como estado que só agiria por  impulso ou irracionalmente.

Os australianos acertam na avaliação, embora só tenham tomado esse rumo por temer que uma conflagração nuclear no Oriente Médio leve a uma corrida armamentista nuclear também na Indonésia (o maior país muçulmano do mundo, e vizinho suficientemente próximo para preocupar os políticos australianos). Sejam quais forem seus motivos, fato é que os australianos parecem ter acertado o olho do alvo – em outras palavras, descobriram que é preciso modificar a abordagem ocidental, de modo a que o ocidente construa abordagem mais equilibrada sobre o Irã. 

E quanto a Israel?

Qualquer argumento de apoio ao Irã, porém, cai automaticamente ante a muralha de pronunciamentos histéricos das lideranças israelenses, contra o Irã. Não há sombra de dúvida na mente dos pensadores da direita judeus e norte-americanos de que, se tiver chance, o Irã, literalmente, “varrerá Israel do mapa”, como o presidente do Irã enunciou, vaidosamente, ano passado. 

Há preocupação séria em termos ocidentais para quem decida alistar-se ao lado do Irã, primeiramente porque não parece haver qualquer sinal de mudança, na liderança iraniana, em relação a Israel, nem qualquer pressão popular visível no país para que essa mudança ocorra. Para dizer o mínimo, o proverbial “homem das ruas” no Irã pensa, sobre Israel e seus interesses, praticamente o mesmo que o seu semiensandecido presidente. 

Isso dito, é preciso considerar outras ideias. Em primeiro lugar, é pouco provável que o Irã tenha capacidade e, especificamente, a disposição, de suportar um contra-ataque de retaliação dos israelenses (menos ainda, dos EUA), se algum dia considerar a possibilidade de atacar Israel. Com mais de 200 ogivas nucleares sob seu controle (há quem fale de 400), Israel é inimigo temível, em caso de retaliação. 

Em segundo lugar, é preciso sentar e examinar atentamente o que os iranianos teriam a ganhar no caso de adotarem essa via: absoluta e completamente nada. Compare-se esse nada com o benefício direto que adviria de resolver o problema-chave dos iranianos, a saber, a queda que o Irã está enfrentando na produção e na exportação de seu petróleo. Outros analistas – inclusive Spengler, meu colega de Asia Times Online – já mencionaram as dificuldades da economia iraniana com sua superdependência das exportações de petróleo. 

Juntando-se medo e ambição, a resposta para reforçar o papel do Irã está, com certeza, em expandir a influência iraniana nas áreas xiitas produtoras de petróleo à volta do Golfo Persa. Exame crítico desse aspecto pode bem revelar a chave para resolver o quebra-cabeças do Oriente Médio e para conter a expansão global do terrorismo Wahhabista. 

O petróleo xiita 

Não é absolutamente novidade, na indústria de energia, que, apesar de os estados sunitas se declararem proprietários de reservas de petróleo, a maior parte das áreas produtoras estão de fato em regiões de populações exclusivamente ou predominantemente xiitas. 

Por exemplo, em dezembro de 2008 o Energy Bulletin publicou a tabela abaixo, em artigo intitulado “Islã xiita e geopolítica do petróleo” [orig. Shia Islam and oil geopolitics], de James Leigh; a tabela [aqui traduzida] mostra a predominância de populações xiitas nas regiões onde se localizam reservas significativas de petróleo. 


POPULAÇÕES XIITAS
País
OPEC
População 
(milhões)
XIITAS 
(%)
XIITAS
(milhões)
Afeganistão

33
19
6,3
Azerbaijão

8,0
90
7,2
Bahrain

0,7
61
0,4
Irã
66,0
90
59,4
Iraque
28,0
60
16,8
Kuwait
2,6
35
0,9
Líbano

4,0
40
1,6
Omã

3,4
2
0,1
Qatar
0,8
20
0,2
Arábia Saudita
28,0
10
2,8
Síria

20,0
25
5,0
Em. Ár. Unidos
4,6
16
0,7
Iêmen

23,0
15
3,5
TOTAL
222,1

104,9

Estados do Golfo               (População de xiitas; Wikipedia, 2008)







O artigo chama a atenção para um ponto-chave: 

Os estados do Golfo de Bahrain, Irã, Iraque, Kuwait, Oman, Qatar, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, têm 81,3 milhões de xiitas ou cerca de 61% da população total do Golfo. Além disso, se tomamos só a população xiita do Irã, Iraque, Kuwait, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, onde estão 58% das reservas de petróleo do mundo, vemos que os xiitas são 62% da população local. Evidentemente os xiitas podem ter significativa influência em toda a região do Golfo, nos seus países e, também, em todo o mundo. Evidentemente, podem mobilizar essa influência regional e mundial mediante a sólida representação que têm na OPEC.

Exame mais detalhado da partes exclusivamente árabes do “mapa do petróleo” mostra a preocupante evidência de, para dizer o mínimo, o sunita médio é fanático. Grande número de campos de petróleo chaves em vários estados árabes à volta do Golfo “Árabe” (só nos EUA; em todo o mundo, é claro, é chamado “Golfo Persa”) estão localizados em áreas nas quais as populações são predominantemente xiitas, os principais deles os campos de Bahrain e Al-Hasa (região que fazia parte do Bahrain durante o império otomano). 


Esse é o núcleo da preocupação dos sauditas, no que tenha a ver com o Irã. Uma expansão do estado xiita poderia provocar grave agitação dentro da Arábia Saudita, mas também limitaria a capacidade do estado para reprimir os jovens e os insatisfeitos, cenário que talvez seja causa de graves preocupações entre os príncipes coroados, que se preparam para o processo de sucessão do rei Abdullah. 

Olhar adiante 

A perspectiva de um Irã nuclear com certeza gera inúmeras preocupações, uma das mais importantes das quais é a de que pode implicar a expansão de um teatro de guerras para longe do Oriente Médio e em direção a Europa e Ásia. As atitudes do país em relação a Israel também preocupam. Contudo, se se assume que a expansão do poder militar do Irã em armas não convencionais seja absolutamente certa, em ambiente no qual os EUA são potência em declínio, com reduzida capacidade para intervir militarmente, nesse caso, então, a segunda melhor alternativa – um modo para controlar a nova potência emergente – tem evidentemente de ser examinada de perto. 


A vantagem básica de um Irã nuclear e de um nascente estado xiita seria a estabilidade que se poderia criar no Oriente Médio, hoje predominantemente controlado por sunitas e Wahhabistas. Não é mau negócio nem para os EUA nem para a Europa, que pouco ganharam em troca de tantos compromissos com a Arábia Saudita e reinos vizinhos desde o 11/9 e as tentativas fracassadas do ocidente para derrotar a al-Qaeda. 

O Irã, por sua vez, bem poderia promover as reformas que, até aqui, têm sido adiadas pelos reinos árabes. Assim, afinal, seria possível começar a pensar em maior estabilidade no Oriente Médio, no longo prazo. 

Um comentário:

  1. Um dos maiores erros ocidentais é essa separação pétrea entre a Suna e a Xia.
    Erro estratégico, com algumas compeensações táticas. Mas o somatório das batalhas perdidas pelo Ocidente (cf. Afeganistão) trespassa todo o projeto pentagonal de "dividir para dominar" no Oriente Médio.
    Neste ano mesmo, os gringos tentaram por nove meses instituir a ingovernabilidade do Iraque, baseada na divisão religiosa. Não deu certo, Bághdade superou o divisionismo e formou há pouco um Governo de União Nacional.

    Abraços do
    ArnaC

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