quinta-feira, 31 de março de 2011

Costa do Marfim: Alassane Ouattarra, o neoliberal do FMI (que o “ocidente” ama amar...)

29/3/2011, *Daniel Balint-Kurti, African Arguments
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu  

Alassane Ouattarra
Costa do Marfim, que já foi “o primo rico” da África Ocidental, vive, desde o final do ano passado, o agravamento de uma crise há muito anunciada. Quando o presidente Laurent Gbagbo foi derrotado em eleições presidenciais ano passado, seus apoiadores denunciaram as eleições como fraudadas e o presidente recusou-se a deixar o cargo. Os dois candidatos declararam-se presidentes: Gbagbo e seu adversário Alassane Ouattara, ex-primeiro-ministro, formado nos EUA onde viveu muitos anos, funcionário do Fundo Monetário Internacional e “guru” da economia neoliberal, cuja vitória eleitoral foi imediatamente reconhecida pela União Europeia, pela ONU e pela União Africana.

Uma onda de sanções caiu sobre o país e milhares de soldados de uma força de paz da ONU e franceses foram enviados para garantir a posse e um governo paralelo de Ouattara, que se instalou num hotel de luxo da principal cidade do país, Abidjan. Desde então, a violência varre o país a partir de Abidjan, já estendida para a vizinha Abobo.

A culpa por esse último fiasco é inteiramente de Gbagbo, que se recusou a aceitar o resultado de eleições marcadas como última etapa faltante de um processo para reunificar o país dividido entre um norte armado e rebelado e um sul oficialista governista, já há mais de dez anos. Mas, embora seja fácil apontar culpados, muito mais difícil é oferecer propostas que encaminhem alguma solução para os problemas costamarfinenses. Agentes internacionais têm-se aproximado, não raras vezes bem intencionados, mas sem considerar que não se trata apenas de candidatos rivais, mas de uma população dividida por eras de política tóxica e propaganda envenenada.

Uma das causas das divisões que se veem hoje na Costa do Marfim é o ódio xenofóbico e étnico, alimentado por muitos políticos locais desde meados dos anos 1990s. Hoje, boa parte desse ódio concentrou-se num homem: Ouattara. Temerosos da popularidade e do prestígio de Ouattara entre europeus e norte-americanos, vários presidentes o rotularam como “estrangeirista” ou “entreguista”, homem que, podendo, venderia o país ao primeiro interessado. Os detratores de Ouattara denunciam também que ele não seria “costamarfinense nativo”, que seria nascido em Burkina Faso, ao norte do país. A propaganda anti-Ouattara aprofundou também, além das divisões étnicas e políticas, também as cisões religiosas que há entre grupos étnicos predominantemente cristãos no sul do país e os grupos étnicos predominantemente muçulmanos no norte do país.

A bola anti-Ouattara foi posta a rolar imediatamente depois da morte, em 1993, do presidente ‘ancestral’, primeiro presidente e pai-fundador do país, Felix Houphouët-Boigny. Ouattara, que foi Primeiro-Ministro de Houphouët-Boigny, disputou a sucessão com o deputado Henri Konan Bédié. Bédié, homem do sul, do mesmo grupo étnico de Houphouët-Boigny (os baulés), venceu as eleições – em parte por causa de decidido apoio que recebeu da França. Eleito, passou a trabalhar para que Ouattara não voltasse a ameaçar sua posição política.

Com essa finalidade, Bédié criou e alimentou uma doutrina hipernacionalista, chamada “ivoirité” em francês, que se pode traduzir por “costamarfinidade” [à maneira de “brasilidade”, “italianidade”, “germanidade” etc. (NTs)], a partir da qual determinou parâmetros que definiriam o que significaria “ser costamarfinense”. Armado com essa teoria racista e xenófoba, Bédié conseguiu incluir no Código Eleitoral a exigência de que os candidatos comprovassem sua “costamarfinidade” para serem elegíveis. O único objetivo de tudo isso era tornar Ouattara inelegível e, simultaneamente, impedir o alistamento eleitoral de inúmeros eleitores do norte, para diminuir o peso eleitoral daquela região. 

Um dos parágrafos da “lei da costamarfinidade” determinava que quem tivesse pai ou mãe (bastaria um) que não pudesse comprovar “origem costamarfinense” não poderia candidatar-se à presidência. Em seguida, Bédié e seus apoiadores reuniram quantidade imensa de documentos para demonstrar que o pai e a mãe de Ouattara eram estrangeiros e que o próprio Ouattara seria nascido em área do norte do país já pertencente ao vizinho Burkina Faso. O conceito de “costamarfinidade” passou a ser argumento central de toda a campanha anti-Ouattara. Bédié inflou o fervor nacionalista à volta desse conceito, e construiu um novo e inflamado “orgulho de ser costamarfinense” e a correspondente resistência xenófoba à ideia de o país ser governado por estrangeiros.

Esse patriotismo xenófobo veio acompanhado por forte preconceito tribal; Bédié dizia que, dentre todos os costamarfinenses, a tribo baulé seria “a mais apta” a governar, por causa de suas tradições políticas que, dizia ele, teriam nascido no Egito antigo. As tribos do norte, por sua vez, não seriam suficientemente ‘nacionais’ e teriam usurpado a nacionalidade legítima das tribos do sul.

Pouco depois de eu chegar à Costa do Marfim como jornalista em meados de 1999, Abidjan converteu-se em cenário de manifestações cada dia mais violentas organizadas por apoiadores de Ouattara, quase todos dos grupos étnicos no norte, que não admitiam ser impedidos de circular pelo país, frequentemente presos em bloqueios nas estradas ou acusados de portarem documentos falsos. No final do ano, o governo Bédié foi derrubado por um golpe militar disparado por uma disputa entre facções de oficiais militares jovens, mas disputa que só se converteu em golpe militar porque aconteceu em contexto político onde já havia alto nível de conflito. Assumiu o governo o general Robert Guéï.

De início, Robert Guéï flertou com Ouattara. Mas em pouco tempo adotou a via de torcer, ao seu modo, o conceito de costamarfinidade. Passou a propagandear que Ouattara seria homem de “dupla nacionalidade”. E daí por diante, entre acusações de golpes de uns contra outros, Ouattara contra Guéïa e Guéï contra todos, a crise só fez complicar-se cada dia mais. Depois de várias prisões, num momento em que se dizia que um golpe militar teria sido descoberto, lembro do discurso em tom ameaçador, pela televisão, feito pelo porta-voz da junta militar de governo: “Se eles querem por fogo no país, então queimemos tudo, sem deixar nada em pé. Em seguida, veremos o que nos ensinam as cinzas”. Era como se todos mais ou menos soubessem que estavam destruindo o país, mas continuassem a por lenha na fogueira.

No final de 2000, o general Guéï, por sua vez, foi derrubado, depois de recusar-se a reconhecer sua derrota, em eleições nas quais concorreu com Laurent Gbagbo (Ouattara fora impedido de candidatar-se). Gbagbo – veterano líder da oposição democrática na Costa do Marfim e que viveu anos na França como exilado político – foi eleito por uma coalizão de vontades na qual se uniram militares da oposição, que derrubaram Guéï. Gbagbo declarou-se presidente e, outra vez, os apoiadores de Ouattara levantarem-se em revolta. Gbagbo respondeu aos ataques, com o exército na rua. Em seguida, a descoberta em Abidjan de um cemitério clandestino onde havia mais de 50 cadáveres de pessoas de várias etnias do norte deu aos defensores de Ouattara os mártires que lhes faltavam – a ajudou a aprofundar ainda mais a divisão do país.

A essa altura, o exército já expulsara grande número de jovens oficiais, todos vindos do norte do páis, o que os obrigou a fugir para Burkina Faso, onde organizaram movimento rebelde. Em setembro de 2002, esses rebeldes atacaram. Não conseguiram tomar a capital, Abidjan, mas assumiram controle militar de toda a metade norte do país.

As eleições de dezembro do ano passado – adiadas inúmeras vezes, já há alguns anos – estavam previstas para restaurar a unidade do país, mas uma persistente campanha de ódio étnico, de xenofobia – que se mistura na Costa do Marfim a uma sempre presente resistência a um ‘imperialismo’ francês e norte-americano (os franceses mantêm interesses gigantescos na Costa do Marfim) que parece ter-se ‘colado’ à imagem de Ouattara, tornou essa unidade praticamente impossível. (...)

Apesar de as disputas políticas entre grupos políticos armados terem longa história na Costa do Marfim, Ouattara tem sido muito frequentemente culpado, por muitos costamarfinenses, de ser instigador das lutas no país. Ano passado, venceu as eleições e deveria ter podido assumir o poder e governar. 

Mas, se tivesse acontecido, é provável que seus apoiadores, nacionais e estrangeiros, armados e ‘empresariais’ também tornassem seu governo tão impossível e inviável, e a Costa do Marfim tão ingovernável, quanto, hoje, os apoiadores do governo de Gbagbo tornam impossível a sucessão e a posse de Ouattara e tornam o país ingovernável

*Daniel Balint-Kurti, entre outros países, trabalhou como jornalista na Costa do Marfim de 1999 a 2007 produzindo relatórios, publicações e artigos para agências noticiosas, incluindo Dow Jones, Reuters e Associated Press. Em setembro de 2007, publicou um documento com título de: Ivory Coast’s rebel Forces Nouvelles for Chatham House .
Balint-Kurti atualmente lidera uma ONG britânica - Global Witness - na República Democrática do Congo.

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