terça-feira, 26 de abril de 2011

Austrália: “sparring” marchando pelo Anzac no 51º estado dos EUA

John Pilger

por John Pilger [*]

A rua em que me criei em Sydney era guerreira. Havia longos silêncios, então o estilhaçar de vidro e gritos. Peter e eu brincávamos de australianos e japoneses. O pai de Pedro era objeto de assombro. Ele mal pesava 45 kg, era sacudido pela malária e muitas vezes ficava demente. Sentava-se numa cadeira de vime, embriagado, cortando o ar com a espada de um soldado japonês que dizia ter matado. Havia uma mulher que esvoaçava de sala em sala, sempre com os olhos vermelhos e atemorizantes, parecia. Ela era como muitas mães naquela rua. Wally, outro companheiro, vivia numa casa que estava sempre escura porque as cortinas de black-out não haviam sido retiradas. O seu pai havia sido “morto pelos japs”. Certa vez, quando a mãe de Wally voltou para casa, ela descobriu que ele havia obtido uma arma, posto na boca e explodido a cabeça. Era uma rua guerreira.

Os insidiosos, impiedosos e perduráveis danos da guerra ensinaram muitos de nós a reconhecer a diferença entre o simbolismo vazio da guerra e o seu significado real. “Será que isso importa?”, zombou o poeta Siegfried Sassoon no fim de uma carnificina anterior, em 1918, quando sofreu a morte do seu irmão mais jovem em Gallipoli. Criei-me com esse nome, Gallipoli. O assalto britânico aos Dardanelos turcos fora um dos crimes graves da guerra imperial, provocando 392 mil mortos e feridos de todos os lados.

As perdas australianas e neozelandesas estiveram entre as mais elevadas, proporcionalmente; e o dia 25 de Abril de 1915 foi declarado não apenas um dia a recordar como o do “nascimento da nação australiana”. Isto se baseava na crença de militaristas eduardianos de que os homens se faziam na guerra, um absurdo prestes a ser celebrado mais uma vez.


O Anzac Day foi apropriado por aqueles que manipulam o culto da violência de estado – o militarismo – para satisfazer uma deferência psicopática à potência estrangeira e para atingirem os seus objetivos. E a “lenda” ignora a única guerra combatida em solo australiano: aquela do povo aborígene contra os invasores europeus. Numa terra de monumentos fúnebres, nenhum foi erigido para eles.

Os modernos amantes da guerra não conheceram qualquer rua de gritos e desespero. O seu abuso da nossa memória dos caídos, e de porque caíram, pode ser comum entre todos os serviçais da potência rapinante, mas a Austrália é um caso especial. Nenhum país está mais seguro no seu remoto distanciamento estratégico e com a riqueza dos seus recursos, mas nenhuma outra elite ocidental é mais ansiosa em falar de guerra e procurar “proteção” imperial.

O orçamento militar da Austrália é de A$32 bilhões por ano [€23,63 bilhões/ano], um dos mais altos do mundo. O valor de menos de dois meses deste belicismo desenfreado pagaria a reconstrução do estado de Queensland após as suas inundações catastróficas, mas nem um centavo está para vir. Em Julho, as mesmas frágeis planícies inundadas serão invadidas por uma força militar conjunta EUA-Austrália, disparando mísseis guiados por laser, lançando bombas e arruinando o ambiente e a vida marinha. Isto raramente é informado. Rupert Murdoch contra 70 por cento da imprensa da capital e a sua visão do mundo são amplamente partilhadas pela imprensa australiana.

Num telegrama de 2009 divulgado pelo WikiLeaks, o então primeiro-ministro, Kevin Rudd, que agora é ministro dos Negócios Estrangeiros, implora aos americanos para “aplicar força” contra a China se Pequim não fizer como lhe disseram para fazer. Um outro líder do Partido Trabalhista, Kim Beazley, ofereceu secretamente tropas australianas para um ataque à China a partir de Formosa. Na década de 1960, o primeiro-ministro Robert Menzies mentiu ao dizer que havia recebido um pedido de tropas australianas do regime criado pelos americanos em Saigon. Desatentos, os australianos disseram adeus a um vasto exército recrutado, do qual quase 3000 foram mortos ou feridos. As primeiras tropas australianas foram dirigidas pela CIA em “equipes negras” – esquadrões de assassinato. Quando o governo em Camberra fez uma rara queixa a Washington de que os britânicos sabiam mais do que eles acerca dos objetivos da guerra da América no Vietnã, o conselheiro de segurança nacional dos EUA, McGeorge Bundy, respondeu: “Temos de informar os britânicos a fim de mantê-los ao lado. A Austrália está conosco aconteça o que acontecer”. Como me disse certa vez um soldado australiano: “Nós somos para os ianques o que os gurkas são para os britânicos. Somos mercenários exceto no nome".

O WikiLeaks revelou o papel americano o “golpe” de Camberra em 2010 contra Rudd por Julia Gillard. Louvada nos telegramas americanos como uma “estrela em ascensão”, os conspiradores do Partido Trabalhista de Gillard revelaram-se como ativos da Embaixada dos EUA em Camberra. Uma vez instalada como primeira-ministra, Gillard comprometeu a Austrália na guerra da América no Afeganistão durante os 10 anos seguintes – o dobro do compromisso britânico.

Gillard gosta de aparecer na TV ladeada por bandeiras. Com o seu andar e olhar robótico, é um quadro inquietante. Em 6 de Abril, ela entoou: “Vivemos num país livre... Só porque o povo australiano respondeu ao apelo quando chegou a hora da decisão”. Estava se referindo ao envio de tropas australianas para vingar a morte de uma figura imperial menor, o general Charles Gordon, durante um levantamento popular no Sudão em 1885. Esqueceu-se de dizer que uma dúzia de cavalos da Sydney Tramway Company também “respondeu ao apelo”, mas expiraram durante a longa viagem.

O reconhecido papel da Austrália como “vice-xerife” (promovido a “xerife” por George W. Bush) é de polícia ao serviço dos desígnios da grande potência, que está agora sendo desafiada na maior parte do mundo. Os principais políticos e jornalistas australianos que informam sobre o Médio Oriente tiveram os seus primeiros voos e despesas pagos pelo governo israelense ou seus promotores.

Dois candidatos do Partido Verde que ousaram criticar a ilegalidade de Israel e o silêncio dos seus apoiadores locais, agora estão sendo atacados. Um serviçal de Murdoch acusou os dois verdes de advogarem uma “reconstituição moderna da Kristallnacht”. Ambos receberam múltiplas ameaças de morte.

Hasteiem mais Bandeiras, rapazes.

20/Abril/2011

O original, em inglês, encontra-se em: Marching for Anzac in the 51th. State
 Esta tradução foi extraída de: Resistir

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