quinta-feira, 26 de maio de 2011

SINAIS DO AMOR


"A mulher", de Di Cavalcanti

Publicado em 26/5/2011 - 18:00,  por Urariano Mota

Do romance inédito Vila Alegria, Rua Éden

Eram noites de vampiro, para Cecílio. Eram noites de ronda para Esmeralda. Pudesse, ela sairia de camisola a bater de casinha em casinha da vila, a intimar:

- Aqui tem homem?

Eram noites de sinais para Valfrido. Sinais que lhe chegavam pelas paredes, em forma de suspiros, sons abafados e imprecações:

- Silêncio, os vizinhos podem ouvir, sussurrava meio a grito Cecílio.

- Danem-se! Danem-se os vizinhos, explodia Esmeralda.

O pobre Cecílio, homem bom, trabalhador do cais, o coitado do homem que sonhara ter uma esposa serena, mansa e suave quando pedira a mão da santa ao pai sapateiro de Esmeralda, descobriu adiante um corpo de demônio na mulata enlouquecida.

O pobre Cecílio acreditara a princípio que depois de um filho toda tempestade seria amainada. Ah engano do mar e das sereias que oferecem rostinhos cândidos como armadilha em que todo homem cai. Oito anos depois, já com o filho Nininho, Esmeralda continuava impetuosa. Era uma estranha matemática a dela: quanto mais recebia, mais lhe faltava. Quanto mais os anos de energia eram gastos, mais energia a danada da filha do sapateiro possuía. Era assim que em seu tormento, “filha de sapateiro”, o estivador Cecílio a via.

Ele não adivinhava que o amor não é um bojo de três dimensões exatas, de capacidade finita e limitada. Que o amor não é vaso, barril esgotado que fica inútil a um canto sem uso e sem expressão. Barril usado que se despreza no sótão. Para o conforto espiritual de Cecílio, assim como para todo homem bom que espera um mundo de justos e injustos sem contradição, como se recebesse um boi só filé para a sua fome, ele casou com Esmeralda pelo rosto de bochechas cheias, lábios carnosos, olhos de cílios longuíssimos, um corpo de sonho, e, essencial para definir um ato sério para uma pessoa séria, com um ar de fragilidade, de mocinha filha de sapateiro que só pede um lugar e um carinho. Frágil Esmeralda quando ele a tomava pela cintura, coisinha frágil e delicada, tão fina que ele a poderia segurar com uma só mão, logo ele, homem bravo e forte.

Assim a frágil Esmeralda aos 18 anos e o fortíssimo Cecílio aos 25 seriam pela força do contraste como num casal de balé suburbano, felizes por toda eternidade. O amor bem que parece eterno a um jovem de 25 anos. Ah, engano. Ah essas mocinhas fortes de alma franca. “Esmeralda me enganou”, ele se dizia naquelas noites pavorosas de vampiro. “Essa mulher tem o diabo num couro de fada”.

Mas Cecílio, como todo homem bom, ainda não percebia a extensão do seu engano. Em seu império de fêmea, Esmeralda o atraía para a salinha e o recebia ali mesmo, encostada à parede, de pé e em pé até o chão. Cecílio não sabia, nem podia adivinhar, que Esmeralda o desejava como uma arapuca para atrair Valfrido. Pois ali, na parede vizinha, deitado em uma rede, vivia e escutava o abrasado Valfrido, solteiro e sozinho. Ali estava ele todas as noites de vampiro, com amor e esperança. Amor que era só desejo: “Que mulher! Ah, danada, eu te pego amanhã. Eu te devoro amanhã, desgraçada”. Ao que Cecílio dizia, reclamando contra os gemidos na sala vizinha:

- Fale baixo.

Mas para quê? A isso a endemoninhada santinha respondia:

- Sim, fale mais “fale baixo”.

Ah, maldita. Cecílio era forte. Cecílio era homem capaz de levantar sozinho dois sacos de 60 quilos de uma só vez. Ele bem poderia, como mais de uma vez o desejou, acabar de vez com o prazer que se tornava um sofrimento. Ali mesmo, contra a parede esmagar a mulher a quem dedicara os mais ingênuos projetos. Bonita, gostosa, obediente, modelo perfeito de criada e servidora do prazer. E lhe saía uma puta. Ah, maldita.

Ele era um homem forte, homem capaz de, em sua força de imaginação, derrubar, derrubar com uma sucessão de sacos de açúcar no porto, derrubar um harém, uma por uma. E lhe saía um harém em uma só fêmea, que reclamava ser derrubada não de modo sucessivo, mas de uma só vez. “Puta, puta”.

Como poderia um homem tão másculo ser assim derrubado, tão murcho, enquanto a filha do sapateiro clamava “quero mais”? Como a força era vencida pela fraqueza de uma cinturinha de violão? Como era possível que o poder másculo e músculos não dobrassem uma frágil fêmea? Ele a queria a seus pés tendo em pé a própria arma justiceira. No entanto, ele descia ao fim nos pés de Esmeralda, em um sentido real, caído de fato, mas com um sentido simbólico que não percebia. 

Chorava, contido. Ele era o macho caído, o anjo Gabriel de espada curva, enquanto Esmeralda levantava uma nova hierarquia, um céu onde o demônio não fora expulso. Um céu, nem no íntimo ela confessava, mas ela queria um céu onde o demônio fosse o supremo. Um inferno em que em vez de ser consumida pelas chamas, “as labaredas do inferno”, como bradava o padre nas missas para as virtuosas, em lugar disso um inferno onde a chama sua, de Esmeralda, fosse alimentadora de suas fornalhas, até o ponto em que o fogo se resolvesse em um campo verde com nuvenzinhas esparsas. Um céu novo queria. Mas entre o desejo e aquela casinha restava aquilo, Cecílio caído, derrotado, e tal derrota ela não queria. Se guerras, e guerras houve, ela quis um tipo diferente de batalha sem inimigos, uma guerra de parceiros para novos jogos e batalhas, sempre.

Mas ali estava o fato, simples e factual: Cecílio era um desperdício de músculos. Que homem fraco. Por que tal potência de guindaste não se levantava? Cecílio, caído, chorava contido. Ele era o anjo declinado em desgraça. Ela era a santa no alto, sem paraíso. Ácida, mordendo os lábios. Todos os lábios, úmidos, sem alimento sólido. E por isso, como sem querer, ela batia na parede, uma, duas, três vezes, porque ouvia bem o balanço dos punhos da rede na casinha de junto. Suave. Depois mais forte ela batia.

A esses sinais, no começo, Valfrido não entendia. Assustado, ao ouvi-los tão próximos, pensara que fossem do marido desconfiado de escutas. Então ele parava e mais quieto se escondia, sem mover a rede, à espera de outros sinais. Esperava na tocaia, para o bote, porque ele se julgava o caçador. Mas os sinais, sem resposta, cessavam. Então Valfrido, a essa altura perdido e irremediavelmente sem sono, voltava a se balançar como um bebê grande, sem consolo, até que os galos cantassem a mal vinda alvorada.

***

Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
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