domingo, 12 de junho de 2011

Militares paquistaneses “enquadram” os EUA


10/5/2011, M K Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido e comentado pelo pessoal da Vila Vudu

Comentário entreouvido  na Vila Vudu:
Essa matéria talvez pareça excessivamente ‘local’, ou distanciada da realidade brasileira. Talvez seja, mesmo, muito distante (talvez nem tanto). Mas é tão deliciosamente estimulante ver alguém “enquadrar” o ânimo beligerante imperialista neocolonialista tresloucado do governo Obama, que a matéria aí vai, traduzida. Além da delícia, é matéria altamente jornalística que, contudo, nenhum jornal brasileiro publicará. 
Um prazer e um furo! E ainda se comprova que qualquer um, com pequeno esforço, num sábado à tarde, faz jornalismo muito melhor – e oferecido gratuitamente –  que o “jornalismo” de araque que, no Brasil, é impingido pelas empresas de comunicação a consumidores pagantes.

A Conferência dos Comandantes dos Altos Corpos do Exército [orig. Corps Commanders Conference] do Paquistão, em Rawalpindi, sempre é ocasião especial para os que acompanham o quadro no Paquistão, esteja o país sob governo militar ou civil. O relatório, redigido em termos sucintos pelo Serviço de Relações Públicas do serviço secreto do Paquistão [orig. Inter Services Public Relations (ISPR)] é sempre dissecado, à procura de pistas sobre o que o exército esteja pensando. Mas o relatório liberado para a imprensa depois da Conferência da 5ª-feira passada[1], que foi presidida pelo comandante geral do exército Parvez Kayani, é excepcional, pela extensão, estilo e conteúdo.

Bem evidentemente, o exército está assumindo a dianteira do chefe do governo, em campanha para reconquistar a confiança da nação, depois de gravemente abalada no pós-Abbottabad [2], quando os militares foram acusados de incompetência na defesa da segurança nacional e pelo papel que têm tido na guerra comandada pelos EUA. O exército paquistanês sentiu que precisava emitir informação clara sobre as relações militares com os EUA. 

É tema altamente sensível, mas Kayani resolveu que era indispensável explicar-se à opinião pública. Os militares querem mostrar que as futuras negociações com os EUA serão transparentes. E, ao mesmo tempo, enviam sinal claro aos EUA de que suas relações militares não podem continuar a ser como antes. Na Conferência de 5ª-feira, foram tomadas as seguintes decisões:

a) Os militares paquistaneses, doravante, dispensarão qualquer assistência militar direta dos EUA.

b) Os militares pedem que o governo redirecione para projetos econômicos todos os fundos recebidos dos EUA a título de assistência militar.

c) A real ajuda militar recebida dos EUA nos dez anos desde o início da guerra do Afeganistão não passou de 1,4 bilhão de dólares. Dos 13-15 bilhões de dólares de que os EUA falam, o Paquistão só recebeu, de fato, 8.6 bilhões, dos quais 6 bilhões foram usados pelo governo civil para “apoio ao orçamento”.

d) As relações entre militares paquistaneses e militares dos EUA passarão, doravante, a ser incluídas no âmbito mais amplo das relações governamentais entre o governo do Paquistão e o governo dos EUA.

e) As relações entre militares do Paquistão e militares dos EUA foram “reavaliadas” no novo contexto que se criou depois da operação Abbottabad [2].

f) A força bélica dos soldados dos EUA estacionados no Paquistão já foi “drasticamente” reduzida.

g) O exército do Paquistão não precisa de nenhum tipo de assistência dos EUA para treinamento de militares.

h) Qualquer tipo de cooperação, no plano das agências de inteligência, será construída em termos estritos de “reciprocidade e perfeita transparência”.

i) As agências dos EUA já foram notificadas de que estão proibidas de executar operações de inteligência “independentes” em território do Paquistão.

j) Os militares paquistaneses não cederão a nenhum tipo de pressão dos EUA para que executem operações no Waziristão Norte. Operações dessa natureza só serão empreendidas algum dia, se houver “consenso político”.

k) Os ataques por aviões-robôs norte-americanos manejados à distância (drones) “não são aceitáveis em nenhuma circunstância. Quanto a essa decisão não deve restar nenhuma dúvida nem permanecer qualquer ambiguidade”.

l) “A situação interna do Paquistão é o fator mais importante a ser considerado e nada lhe tirará essa prioridade”.  

Essa dura resposta veio dias antes do esperado anúncio, por Obama, da redução do número de soldados do Afeganistão. Os esforços dos vários importantes agentes dos EUA nas últimas semanas – John Kerry, Hillary Clinton, Mike Mullen – para restaurar a fratura exposta no relacionamento entre militares do Paquistão e militares dos EUA, deram em nada.

A política para a ajuda militar dos EUA é discutível, porque, de fato, o exército paquistanês tem orçamento à parte, separado do orçamento do governo. Claramente, os militares paquistaneses não confiam nas intenções dos EUA. A desconfiança se manifestou já durante o caso Raymond Davis, agente especial da inteligência norte-americana que foi preso no Paquistão em fevereiro-março. Durante os dois meses durante os quais foi interrogado pelo serviço secreto paquistanês em Lahore, Davis falou muito sobre a extensão da penetração da inteligência dos EUA no Paquistão. 

O documento do ISPR conclui com decisão absolutamente espantosa, que mostra muito claramente o quanto consideram grave a situação da segurança interna: o exército do Paquistão exige que os EUA suspendam todas as operações secretas [orig. covert operations]. 

O documento nada diz sobre a guerra do Afeganistão, embora Hamid Karzai seja esperado em Islamabad na 6ª-feira. Não há sinal de que a cooperação de inteligência com os EUA tenha qualquer possibilidade de restauração. A questão dos ataques com aviões-robôs não tripulados, drones, já é ponto claro de discórdia; e que ninguém espere que o exército do Paquistão ataque [a al-Qaeda] no Waziristão Norte.

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Nota de tradução
[1] Lê-se o documento, na íntegra, em inglês, em: Press Release: 139th CORPS COMMANDERS’ CONFERENCE
[2] Abbottabad: local onde Osama bin Laden foi assassinado pelos EUA em território paquistanês.

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