sexta-feira, 19 de agosto de 2011

APARECEU A MARGARIDA!


Raul Longo observando
as margaridas do Sambaqui

por Raul Longo

Dizia-se que Geraldo Vandré escrevera e inscrevera “Pra não dizer que não falei das flores” no III Festival Internacional da Canção de 1968, como espécie de resposta à música premiada no anterior: “Margarida”, de Gutemberg Guarabira.

Naquele 68 os ventos da ditadura sopraram mais fortes fazendo estragos por todo o país e o mesmo público que no ano anterior fizera coro ao “olê, olê, olá” do madrigal de Guarabira, vaiou a melodiosa “Sabiá” de Chico Buarque e Tom Jobim, em apoio à convocação de Geraldo Vandré pelo “Pra não dizer que não falei das flores”, hino ainda hoje entoado em sinal de protesto ao que seja lá que se pretenda contestar.

Até mesmo a direita remanescente dos que torturam e exilaram Vandré, vez por outra empresta os versos de “Caminhando” para tentar arregimentar o populacho em defesa de seus interesses em reconquistar poderes que mesmo não totalmente perdidos, evidenciam-se bastante reduzidos em relação ao que possuíam naqueles tempos.

Tempos em que uma incipiente esquerda confundia-se em relação às suas próprias proposições, enquanto a truculência da repressão do regime ditatorial imposto pelas armas massacrava os movimentos mais cônscios e articulados, formados ao longo das décadas anteriores e sobreviventes da ditadura Vargas.

Entre eles as Ligas Camponesas criada na década de 30. Acusada de movimento comunista foi extinta para ressurgir em 1954 quando na cidade de Vitória de Santo Antão se formou a Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco. A SAPPP tinha três objetivos básicos, sendo o primeiro o auxílio funerário para resolver a situação retratada por João Cabral de Melo Neto em “Morte e Vida Severina”, poema que se tornou a principal obra da dramaturgia brasileira ao ser musicada pelo mesmo Chico Buarque da vaiada “Sabiá” do III Festival da Canção.

Mas além de procurar resolver a situação do camponês que em vida fugia da seca, da fome, da espoliação e violência dos latifundiários, e na morte ainda teria de continuar fugindo da vala comum da indigência; a cooperativa de Vitória de Santo Antão também prestava assistência jurídica, médica, educacional e, através de uma cooperativa de crédito pretendia liberar os camponeses pernambucanos do domínio dos latifundiários.

Arrendaram um engenho de “fogo morto”, como na região indicam as terras tornadas improdutivas pela monocultura da cana, e convidaram o proprietário para integrar o movimento através de um cargo de honra. A princípio a honraria foi aceita, mas influenciado por outros latifundiários da região e estimulado pelas melhorias que os foreiros implantaram em suas terras, o dono do antigo Engenho Galiléia decidiu expulsar os camponeses que em Recife procuraram o apoio do advogado Francisco Julião.

Em 1955 Julião institucionalizou a SAPPP e a imprensa pernambucana acorreu a chamá-la de Liga, relacionando-a ao movimento anterior que fora proscrito junto com o Partido Comunista. Em 1959 a SAPPP obteve a desapropriação do engenho e já no início da década de 60, assumindo a designação com que a imprensa tentava implicá-la como comunista, as Ligas Camponesas se espalharam por 13 estados brasileiros, pleiteando a reforma agrária e atingindo repercussão internacional.

Assim como as Ligas Camponesas, o golpe militar de 1964 extinguiu outros movimentos populares e perseguiu lideranças dos mais diversos setores sociais, deixando órfã a juventude em formação nos grandes centros urbanos.

Atingindo a puberdade sem orientação política, mas com hormônios que os estimulava a importação das insatisfações que da Paris de maio de 68 se irradiara por todo o mundo, os jovens brasileiros ainda tinham as próprias justificativas nacionais, pois fosse o que fosse o governo de Charles de Gaulle para os de França, ainda era um herói na luta contra o nazismo. E no Brasil o totalitarismo assumia-se como nazista.

Natural que desse processo surgisse a chamada esquerda festiva entre a classe média urbana que num ano se cantava como “reis e cavaleiros” de idílicos feudos medievais pra no outro se lamentar como “soldados perdidos na mesma lição de morrer pela pátria e viver sem razão”. 

Duas semanas antes vaiaram o rock balada “É Proibido Proibir” de Caetano Veloso, considerando o figurino tropicalista e os acordes eletrônicos uma aceitação do colonialismo cultural, ignorando que o título da música reproduzia a palavra de ordem do levante que os inspirava.

Se Caetano questionou a consistência daquela juventude que pretendia tomar o poder do país, o próprio Vandré teve de lembrar que “a vida não se resume em festivais” para conter os que em defesa de sua “Caminhando” impediam a interpretação de “Sábia”, igualmente considerada como desvinculada da realidade nacional.

Não havia percepção de quanto o poema musicado por um dos mais talentosos maestros brasileiros ou os versos de um dos maiores poetas de nosso cancioneiro, se referiam à realidade do exílio que o regime impunha a todos os brasileiros dentro do próprio país.

Mas, enfim, o tempo passou e muita coisa mudou de lá pra cá.

Daqueles radicais que exigiam a sagração do hino de Vandré no festival, a maioria já pouco se importa se nos campos e construções há fome ou não.
O próprio Vandré, mesmo depois de retornar ao Brasil, se autoexilou em ostracismo.

Gutemberg Guarabira continua mais ou menos a mesma coisa. E Caetano por vezes uma coisa e por vezes outra. Ou não...

Tom Jobim tornou-se um sabiá desses que a gente ouve diariamente e nem percebe quanta saudade nos faz.

Já o Chico... O que dizer do Chico Buarque? Qualquer coisa que se comente de Chico Buarque de Hollanda ou se repete o óbvio ou, para bancar o diferente, acaba se passando por idiota como fez o tal Reginaldo Azevedo através de uma revista que ainda circula por aí.

Mas isso pouco importa.

O que de fato importa são as Ligas Camponesas que a ditadura acreditou ter eliminado em 64 depois de um fuzilamento com balas de festim na frente do Palácio do Governo em Recife, quando homens, mulheres e crianças se pisotearam para fugir dos soldados com ordem de impedi-los que protegessem o então governador Miguel Arraes.

As balas não existiram, mas os estampidos sim e as mortes sim. Paulo Julião foi exilado e morreu no México. Arraes foi deposto, torturado e exilado para depois voltar e ser novamente eleito governador pela vontade popular, depois que a ditadura acabou.

Em 1984, apoiados pela Comissão Pastoral da Terra e inspirados nas Ligas Camponesas, trabalhadores rurais fundaram o MST na cidade de Cascavel, no Paraná. Hoje os camponeses do Brasil formam o maior movimento social do mundo e se distribuem por todos os estados da federação. Contam com a ajuda e participação de significativas e respeitáveis instituições e governos de diversos países, além da simpatia de intelectuais internacionalmente consagrados.

No dia 17 de agosto de 2011, cerca de 100 mil camponesas participaram da Marcha das Margaridas para o desenvolvimento sustentável com justiça, autonomia, igualdade e liberdade.

A Marcha das Margaridas é um evento anual promovido pelas trabalhadoras dos campos e das florestas do Brasil e leva esse nome em homenagem à Margarida Maria Alves, líder sindical brutalmente assassinada por usineiros da Paraíba em agosto de 1983, quando a ditadura militar ainda era vigente.

As Margaridas foram recepcionadas pela Presidenta Dilma que reivindicou-se como mais uma Margarida.

Um desses telejornais, de uma emissora qualquer, comentou que a marcha atrapalhou o trânsito de Brasília.

O que isso importa?

Tampouco importa o que diga o Gutemberg Guarabira, pois agora, sim, dá pra cantar o refrão de sua música com gosto: Apareceu a Margarida! Olê, olé, olá!

Texto enviado pelo Autor

Um comentário:

  1. Reginaldo Azevedo, foi ótimo...
    Desculpe não comentar, senhor Raul, julgo-me incompetente para tanto, posto que seu fulgor me ofusca.
    Passei aqui só para aprender.

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