terça-feira, 20 de setembro de 2011

Khamenei lançou a luva

Mahan Abedin

20/9/2011, Mahan Abedin, Asia Times Online  
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu


Além dos aspectos ideológicos e inspiracionais, o discurso de Khamenei, anteontem, na abertura da Conferência “Despertar Islâmico” [1] abraçou assumidamente questões estratégicas chaves como, dentre outras, a ansiedade que consome as grandes potências não-ocidentais, como Rússia e China; e também potências ainda emergentes, como Brasil e Índia, ante o que possa acontecer se aumentar a influência do ocidente no mundo muçulmano – sobretudo, é claro, depois da intervenção e ocupação militar, pela OTAN, na Líbia.

A Conferência “Despertar Islâmico”, que se realizou em Teerã no final de semana foi ocasião para que a República Islâmica do Irã expusesse sua narrativa a respeito da chamada “Primavera Árabe”. 

Participaram da Conferência centenas de intelectuais, líderes espirituais e ativistas políticos do mundo islâmico e de fora dele, recepcionados, na abertura, pelo Grande Aiatolá da Revolução Islâmica Seyed Ali Khamenei e pelo presidente Mahmud Ahmadinejad. 

O discurso do Aiatolá Khamenei na abertura da Conferência é documento muito importante, porque ali estão postas, do modo até aqui mais completo e claro, as ideias da República Islâmica sobre os levantes populares em todo o mundo árabe e sobre o projeto do Irã, para enquadrar, num paradigma revolucionário islâmico, as mudanças que estão ocorrendo. 

É importante examinar em detalhe as palavras de Khamenei, porque esse foi o mais importante de seus discursos públicos, desde junho de 2009, quando comentou, na fala das Orações da 6ª-feira, as manifestações de rua, em Teerã, depois das eleições. 

Aquele discurso, rico de mensagens sutis e complexas, foi instrumento vitalmente importante para que a República Islâmica e seus apoiadores conseguissem desarmar a infraestrutura política, intelectual e organizacional que começava a constituir-se no movimento que já aparecia em todo mundo sob o nome de “movimento Verde”. 

Antes de analisar o discurso do Grande Aiatolá Khamenei, vale a pena resumir os conceitos básicos, fundacionais, que subjazem ao atual debate. Os discursos de Khamenei ao longo dos últimos 21 anos, desde que assumiu a liderança da República Islâmica, têm sido construídos para enquadrar, delinear e expandir a compreensão e as interpretações de questões chaves – econômicas, sociais, culturais, políticas nacionais e regionais e de política exterior. 

São discursos que podem ser considerados como declaração de intenções, no que tenham a ver com pressupostos ideológicos; mas só muito raramente (se algum dia aconteceu) as ideias que aparecem pela primeira vez nos discursos do Grande Aiatolá são implementadas diretamente, sem demorada consideração a outros pontos também definidos como relevantes – como interesses pragmáticos e viabilidade. 

Na esfera da política externa, os discursos de Khamenei visam, sobretudo, a expor orientações ideológicas e metas a serem buscadas diretamente nas relações exteriores. Mas, embora o conteúdo ideológico que Khamenei acrescenta seja sempre importante elemento da concepção da política externa da República Islâmica – e ele tenha, sim, a palavra final em todas as questões relevantes de Estado –, não se pode deixar de observar que em nenhum caso a política externa iraniana pode ser definida exclusivamente em termos ideológicos. 

Não é objetivo desse artigo avaliar detalhadamente a formulação e a implementação da política exterior da República Islâmica. Basta-nos, aqui, anotar que, para entender correta e profundamente aquela política, é preciso conhecer os temas fundacionais sobre os quais se construiu a política exterior do Irã desde o início do século 19, e o quanto, daqueles temas, foram cooptados, adaptados e modificados pelo discurso da Revolução Islâmica de 1979. Outro estrato adicional de pesquisa deve dedicar-se ao estudo das instituições existentes, cuja missão é interpretar, adaptar e, afinal, implementar a simbiose resultante. 

Para nos dar condições para entender melhor o mais recente discurso de Khamenei, vale a pena examinar as raízes ideológicas e fundacionais do que pensa o Irã sobre a islamização. As ideias e o discurso da República Islâmica sobre islamização repousam sobre três fundamentos.

Primeiro e principal, no plano mais profundo da autodefinição e autoidentificação da Revolução Islâmica Iraniana, estão as raízes e a força gerativa constituinte que vêm do xiismo, mais especificamente da experiência histórica ou imaginada dos “Doze Xiitas Muçulmanos” [ing. Twelver Shi'ite Muslims] [2]. 

Segundo, nos planos intelectual e político, a Revolução Islâmica critica a modernidade ocidental, não com vistas à total rejeição, mas para destacar a divergência entre as respectivas experiências históricas, que marcam diferenças entre o campo ocidental judeu-cristão e o mundo islâmico. Resultado disso é uma crítica profunda do secularismo à maneira do ocidente, mas aceitação com restrições da democracia de estilo ocidental, considerada sempre, contudo, sem os sobretons liberais. 

Terceiro, na esfera das relações exteriores, a Revolução Islâmica adota visão e política do panislamismo e, em resumo, aspira à unidade política do mundo do Islã. 

Pode-se dizer que esse terceiro fator é o mais importante, na medida em que controla o cerne da energia da Revolução Islâmica para a esfera geopolítica e modela sua visão política e suas as políticas, em direta oposição à visão e às políticas das potências ocidentais dominantes hoje. Esse é ponto de partida importante para demarcar diferenças entre a visão islâmica iraniana e de outros casos notáveis, como, por exemplo, dos turcos, cujos islamistas “soft” [ing. no original], reunidos principalmente no Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP), associam a islamização ao paradigma de democratização mais radical e desenvolvimento econômico. 

Similar ao partido AKP turco, a ala reformista da República Islâmica prioriza a democratização, o desenvolvimento da sociedade civil e a resiliência econômica, em detrimento de inovações e radicalismo na política externa. 

Mas o ponto chave que se deve considerar é que, embora os reformistas da República Islâmica tenham conseguido incorporar suas ideias e visão sobre política e sociedade civil, hoje entretecidas no próprio tecido da sociedade política e intelectual do Irã, as suas ideias sobre política externa têm sido consideradas ainda pouco claras, em termos conceituais; por isso, têm sido, em larga medida, excluídas do processo de tomada de decisões nas instituições da política exterior do Irã. 

A coordenação, no tempo, entre essa Conferência sobre o “Despertar Islâmico” e o discurso de Khamenei, também é fator importante a considerar, porque coincidem com a visita de líderes ocidentais à Líbia[3]e com o tour regional do primeiro-ministro da Turquia Recep Tayyip Erdogan[4]– que teve seu ponto mais alto na visita ao Cairo. 

Teerã vê como ameaças esses dois eventos, embora em graus diferentes de intensidade e consequências. A visita do primeiro-ministro britânico David Cameron e do presidente Nicolas Sarkozy da França, apresentadas como visita “em triunfo” a Trípoli, está sendo interpretada em Teerã como declaração, pelas potências ocidentais, de sua intenção de intervir diretamente – inclusive intervenção militar, se necessária – nos processos políticos que estão modelando as convulsões em todo o mundo árabe; e intervenção que visará, também, a renovar e consolidar a influência política e econômica do ocidente na região. 

A passagem de Erdogan pela região, com várias paradas, está sendo interpretada em Teerã como tentativa de Ancara de, não só salvaguardar interesses chaves, econômicos e políticos da Turquia, mas, também, para divulgar “o modelo turco”, a visão que os turcos têm de uma democracia “local” com desenvolvimento econômico para a região – marcadamente diferente (mas não fundamentalmente) diferente da visão ocidental. 

A Conferência “Despertar Islâmico” em Teerã acontece também em momento em que crescem os ataques contra o Irã, por líderes ocidentais importantes, como o secretário de Relações Exteriores da Grã-Bretanha, William Hague, que acusou o Irã de hipocrisia, por apoiar revoluções no mundo árabe, depois de ter reprimido movimentos de protesto no próprio país, em 2009; e por apoiar também o fragilizado regime sírio. 

Por sua vez, o Irã também acusa o ocidente de hipocrisia; chama a atenção para os laços que, por muito tempo, uniram o ocidente e líderes árabes autoritários (entre os quais o Irã inclui Muammar Gaddafi na Líbia); apoio a ditadores que, por oportunismo, o ocidente, depois, converteu em apoio à Primavera Árabe. O Irã também acusa países ocidentais de apoiarem algumas revoluções (como na Líbia) e, simultaneamente, fechar os olhos ante a repressão violenta contra manifestantes, em outros casos (como no Bahrain). 

Nesse discurso, o Grande Aiatolá Khamenei elabora sobre três fatores crucialmente importantes para que se compreenda o pensamento iraniano sobre o que se denominou “Despertar Islâmico”. A saber: raízes históricas e identidade ideológica dos movimentos árabes de protesto; perigos e ameaças que cercam esses movimentos revolucionários embrionários; e sugestões, derivadas da experiência direta da Revolução Islâmica Iraniana, para evitar e neutralizar aqueles perigos e ameaças. 

Sobre o caráter dos movimentos de protesto, Khamenei os conecta aos 150 anos de movimentos islâmicos revivalistas no mundo muçulmano. Distingue-os das mudanças políticas imediatamente pós-coloniais em países como Egito, Argélia e Líbia, que foram liderados por pequenas elites militares que apenas pressupuseram que teriam apoio popular para suas ações; e chama a atenção para a natureza de “movimento de massa” dos movimentos hoje em curso; chama atenção, também, para a evidência de que são milhões de pessoas que clamam por mudança política. No caso dos movimentos em curso, o apoio popular à mudança não é só pressuposto, mas visível a olho nu. 

Sempre em espírito de celebrar o poder dos movimentos de massa, Khamenei condena fortemente a intervenção militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na Líbia e interpreta a intervenção como flagrante tentativa, pelas grandes potências ocidentais, de alcançar posição da qual possam controlar o movimento árabe revolucionário, e conseguir dirigi-lo, de modo a que sirva aos interesses ocidentais (ideológicos, políticos e econômicos). 

Ao ligar os movimentos da Primavera Árabe aos 150 anos de luta por um renascer islâmico, Khamenei trabalha para definir os movimentos de rua no mundo árabe, hoje, como “parentes próximos” do modelo da Revolução Islâmica Iraniana. Essa modelagem ganha níveis mais densos quando Khamenei fala sobre as mais profundas aspirações dos manifestantes árabes. 

Segundo o Grande Aiatolá Khamenei, os manifestantes são arrastados por quatro aspirações principais: reviver a honra nacional, depois de décadas de governo ditatorial, caracterizado pela subserviência ao ocidente; manter alto o padrão islâmico, ao mesmo tempo em que lutam por justiça social e desenvolvimento econômicos autênticos – os quais, para Khamenei, só são possíveis sob as regras da lei islâmica, a Xaria; resistir contra a influência política e cultural dos EUA e da Europa; e para que se unam todos os países árabes, na batalha contra Israel, descrita como “regime usurpante” e “governo sionista fantoche”, implantado pelo ocidente na região na forma de um “reino Cruzado”, para expulsar todo um povo de sua terra original e histórica e manter cravado permanentemente um punhal, no corpo político da Região. 

O modo como Khamenei vê as motivações subjacentes nos movimentos populares da Primavera Árabe e, pode-se conjecturar, também sua visão dos possíveis resultados políticos, acompanham bem de perto, como sinônimos, o que a República Islâmica pensa como o principal significado de islamização: luta para recompor o mapa geopolítico da região, que prevê expulsar influências estrangeiras não buscadas ou que se tenham imposto à força – referindo-se sempre e sobretudo à massiva presença militar dos EUA no Golfo Persa. 

Khamenei relembra que imediatamente depois da vitória da Revolução Iraniana em 1979, os novos líderes revolucionários (inclusive ele próprio) esperavam que o Egito os seguisse no processo revolucionário, dado o potencial que viam naquele país para mudança revolucionária, consideradas as profundas raízes do revivalismo no Egito e os muitos grandes intelectuais e líderes islâmicos que o Egito produziu. 

Para Khamenei, o retardo do processo revolucionário no Egito explicar-se-ia pelo argumento de que, hoje, a revolução egípcia aparece “em momento adequado”. É possível que o foco específico no Egito seja casual, reforçado pelo fato de que aquele país desempenha papel central nas questões árabes e no destino comum de todos os árabes. 

Mas é mais provável que o destaque que Khamenei deu ao Egito seja expressão de alguma frustração entre os líderes iranianos, e apelo direto aos sentimentos pró-iranianos que há no vasto movimento islâmico egípcio, incorporado, sobretudo, mas não exclusivamente, na Fraternidade Muçulmana. 

Os segundo e terceiro tópicos (ameaças às revoluções árabes; e meios para enfrentar essas ameaças) refletem a experiência direta da Revolução Iraniana, com vistas à luta dos novos revolucionários contra seus inimigos internos e externos. 

Khamenei divide as ameaças presentes em duas amplas categorias: ameaças que brotam de dentro das fileiras dos revolucionários; e ameaças cuidadosamente planejadas pelos inimigos externos dos revolucionários. 

Sobre as primeiras, Khamenei alerta contra o excesso de complacência em relação aos avanços da revolução e a ambição pessoal de alguns dos aspirantes a líderes da revolução. Alerta também contra moderar demais as exigências e os objetivos da revolução, ante ameaças reais ou pressentidas e a corrupção agenciada pelas potências “arrogantes” – expressão que sempre designa os EUA e seus aliados. 

Em relação aos fatores externos, o líder iraniano identifica, como principal e mais perniciosa ameaça, a persistente tentativa, pelo Ocidente, de infiltrar-se em todos os níveis da revolução. Khamenei diz que, depois da queda “inevitável” de seus asseclas locais, o ocidente continuará a tentar manter no poder os velhos respectivos “sistemas”, para impedir que os frutos das revoluções sejam fruídos e gerem, como se deve prever que aconteça, sistemas completamente novos. 

Como conselho para superar essas ameaças, Khamenei lembra que o desvio dos movimentos revolucionários, hoje, já é visível nos slogans e objetivos declarados. E, aí, o líder iraniano lança ataque direto contra os EUA, a OTAN e os “regimes criminosos” do Reino Unido, França e Itália, os quais, diz ele, já foram potências ocupantes e de exploração nas mesmas terras às quais hoje voltam como falsos libertadores. 

Khamenei alerta contra extremistas religiosos e chama a atenção para que se identifiquem e administrem-se as diferenças religiosas no mundo islâmico. Aconselha que a islamização não se deixe acompanhar por tendências reacionárias, intolerância e chauvinismo religiosos – os quais, diz ele, podem gerar violência “cega”. 

Aí se vê expressão do medo, entre os líderes iranianos, de que um dos efeitos imediatos da instabilidade provocada pelo colapso da ordem árabe possa ser o aprofundamento de divisões sectárias na região, com escalada nos conflitos já existentes. 

Além de listar ameaças pontuais, Khamenei diz que a principal tarefa à qual os revolucionários árabes terão de dedicar-se é propor e construir novos “sistemas”, os quais, diz o líder iraniano, são a mais firme garantia contra a contaminação nos planos intelectual e político, por outros sistemas político-ideológicos, principalmente contra o secularismo, o liberalismo, o nacionalismo e as ideologias do esquerdismo ocidentais. 

Por fim, diz que a criação de uma Umma (comunidade) islâmica unificada e o florescimento de uma nova civilização islâmica baseada na “religião, na lógica, na ciência e na ética” devem ser postos como objetivos máximos dos movimentos revolucionários no mundo árabe. O destaque que Khamenei dá à unidade islâmica, como principal objetivo dos revolucionários é esforço para harmonizar, de um lado a trajetória política de longo prazo das revoluções árabes, e, de outro, a dimensão aspiracional da política exterior do Irã. 

Esse discurso de Khamenei é evento relevante e significativo e deve ser considerado, em todos os sentidos, uma declaração de intenção. Mais do que orientado para o público que o ouviu diretamente, o discurso foi dirigiu-se às instituições oficiais do governo iraniano e aos apoiadores da Revolução Islâmica na região e fora dela. O discurso é como uma aula, que instrui todo esse grande público, em termos gerais, sobre como ler e interpretar as mudanças políticas pelas quais passa o mundo árabe; para que todos possam, na sequência, calibrar cada respectivo engajamento com cada ator envolvido. 

É reação direta às declarações e ações de líderes ocidentais nas últimas semanas e visa a provocar uma escalada na guerra retórica. Khamenei quer que o mundo veja, com mais clareza e sob foco mais fechado, as profundas diferenças de paradigma que separam as revoluções em curso no mundo árabe, e a ‘resposta’ das potências “arrogantes” àquelas revoluções. 

Além dos aspectos ideológicos e inspiracionais, esse discurso de Khamenei abraçou assumidamente questões estratégicas chaves como, dentre outras, a ansiedade que consome as grandes potências não-ocidentais, como Rússia e China; e também potências ainda emergentes, como Brasil e Índia, ante o que possa vir a acontecer se aumentar a influência do ocidente no mundo muçulmano – sobretudo, é claro, depois da intervenção e ocupação militar, pela OTAN, na Líbia. 

Ao posicionar o Irã em oposição direta e declarada às ideias e planos do ocidente, Khamenei explora muito habilmente a crescente ansiedade em Moscou e Pequim e aumenta o incentivo àqueles países para que apoiem o Irã nesse conflito diplomático, político e potencialmente também militar com o ocidente. 



Notas dos tradutores
[1]  Transcrição integral (em inglês) - em processo de tradução para o português do Brasil.
[2]  Xiitas “Dozistas” [ing. Twelver Shia ou os Ithnā'ashariyyah'] são o maior ramo do islamismo xiita. A denominação deriva da doutrina que segue os ensinamentos de 12 imãs, em sequência fixada por deus, os chamados “Doze Imãs”.
[3] Ver 17/9/2011, Pepe Escobar, “Líbia: ao rei Sarkozy, o butim.
[4] Ver, 14/9/2011, Pepe Escobar, “Turquia, na vanguarda da Primavera Árabe”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.