quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A outra morte de Trotsky



Publicado em 22/09/2011 por *Urariano Motta

Recife (PE) - Em um livro que um conjunto de amigos de Água Fria irá publicar pela Editora Coqueiro, aparece este relato que resumo a seguir. Espero que se divirtam.

Noite de sábado, o bar de seu João, que chamávamos de Barraca do Caldinho, com as portas fechadas. Sete horas, 1971.

Eu, Spinelli e Zanoni estamos em nossas melhores roupas para a sessão de arte do Cine Coliseu. Em frente ao pequeno muro, que limita o terreno da casa e barraca do seu João, fazemos o nosso ponto de partida.

O calor da noite do subúrbio de Água Fria faz seu João sair de camisa aberta sobre o ventre. Ele sai para nos ver, para um dedo de prosa, mas sai como se saísse por acaso, sem rumo, como se viesse apenas para descansar os olhos na poeira da noite. Amiúda os olhos e, para melhor assegurar-se de que não existem estranhos por perto, começa a conversa por comentários irrelevantes, enquanto vira o rosto para um e outro lado. Recostado ao portão da casa. Seu João agora mais se acerca, para estreitar melhor o laço. Mas ainda com cautelas.

- Está um calor danado. As folhas nem balançam.

Olha para um lado, para o outro. E pergunta em voz baixa:

- Vocês sabem como morreu Trotsky? Psiu, escutem.

Calamo-nos, à sua volta.

- Desde Lênin que Trotsky pregava a contrarrevolução. Mas Lênin era meio diplomata, muito intelectual, era Trotsky desfazendo e Lênin conversando, “pode ser, Trotsky, vamos ver, Trotsky”...

Seu João respira fundo, como quem chega ao fim de longas caminhadas e conversações.

- Lênin morre. Lênin morre e assume Stálin, o bigode de aço. Aí a conversa já era outra. Era ação! vocês estão entendendo? A situação mudou. Os capitalistas tudo querendo, ó, botar nos russos, fazendo o cerco, hem, que é que vocês querem? É a mesma coisa que seu doutor e a senhora madame chegarem aqui, na minha barraca, pra mudar meu comércio, ao gosto deles, hem? – É deste muro pra fora.

Escutem. Então, o que faz Trotsky? Se é de Trotsky mudar, não, ele achou que com o bigode de aço era mais fácil. Ele passou a querer, abertamente, derrubar Stálin. Escutem. Stálin, ainda por respeito a Lênin, tentou conversar: “Trotsky, você pare com isso. A coisa não é do jeito que você quer não. Vamos tirar por menos”. E Trotsky falando, “Não, porque é muito cedo para a Rússia virar comunista, vamos frear, vamos parar”, isso falando pra todo o mundo. (E noutro tom, como quem segreda: - O que ele estava querendo mesmo era fazer o jogo do inimigo, vocês estão entendendo? Era...) E Stálin, já perdendo a paciência: “Trostsky... Trotsky, eu estou lhe avisando”. E Trotsky, pa-pa-pá, pô-pô-pô, está errado... e abrindo o flanco pro inimigo. Aí Stálin perdeu a paciência e  expulsou Trotsky: “Dane-se, vá lá pra juntos dos americanos”.

Escutem. Foi assim mesmo. Prestem atenção. Vocês notem que se Stálin fosse um homem perverso, podia ter despachado Trotski ali mesmo, de vez, lá na Rússia. Força, coragem, pulso forte, não lhe faltavam. Se ele arrasou as tropas de elite dos nazistas, se ele destruiu a maior força militar do mundo, hem?

- Mas seu João, ousamos provocar, não foi o general-frio que derrotou os nazistas?

- É, o general-frio ... Stálin era um general frio desgraçado.

E fica, a balançar o queixo, encarando-nos.

- Psiu! Não interrompam. Aí Trotsky roda, roda, e para no México. Para lá, mas continua falando. Vocês vão vendo como são as coisas. De lá do México Trotsky continuava a querer comandar os quintas-colunas da Rússia. E Stálin, de vez em quando mandava um aviso (e seu João diz “Trotsky” como um cão que rosna diante de quem lhe deseja tomar o osso): “Trotsky ... Trotsky .... olhe....”, e Trotsky falando. Trotsky falava, escrevia, fazia ligações com os russos reacionários, com os ingleses, com os americanos...

Seu João olha para mim, olha para Spinelli, olha para Zanoni. Tem agora a certeza absoluta de domínio, é dele o poderoso desfecho.

- Pra encurtar a história. Aí lá no México, lá mesmo no México, espontaneamente, o povo se revoltou e matou Trotsky.

Sobre nós cai um silêncio que sentem os incrédulos diante de um testemunho de fé. Ficamos sem o menor ânimo de opor uma restrição, de corrigir, de emendar este segundo assassinato de Trotsky.

Deslizamos:

- Vamos?

Vamo-nos. Da esquina, antes de atingirmos a Júlio Ramos, ainda vemos seu João a nos fazer acenos, “psiu, só mais uma coisa”. Apressamos o passo para o Cine Coliseu, antes que seja tarde. A Confissão de Costa-Gravas nos espera.    

*Urariano Motta é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). 

Um comentário:

  1. (comentário enviado por e-mail e postado por Castor)


    Relato, no mínimo, surpreendente.
    E muitissimo convincente.
    Abraços.
    Silvio de Barros Pinheiro.

    ResponderExcluir

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.