sábado, 17 de setembro de 2011

Pepe Escobar: “Líbia: ao rei Sarkozy, o butim”


Pepe Escobar

17/9/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
 
Saia da frente, Lawrence da Arábia. O Grande Libertador Gaulês da Líbia (e de outros árabes otários à vista), o neonapoleônico presidente francês Nicolas Sarkozy, carregando consigo seu camaradinha primeiro-ministro britânico David da Arábia Cameron, andou galantemente por um aeroporto militar protegido por cordão sanitário-militar em Trípoli para cantar La Vie en Rose ao lado do Mediterrâneo, celebrando assim o sucesso do longo bombardeio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) de empurrar a Líbia até a “democracia”. 

Pendurado nele, à caça dos fotógrafos, vinha o insuportável autopromotor e autoproclamado “novo filósofo” Bernard-Henri Levy, o do peito perenemente exposto sob a camisa branca recém passada, ele, o do famoso telefonema de Benghazi, para “vender” uma guerra ao detonado Libertador Gaulês (como se Rei Sarkô fosse de recusar qualquer mãozinha para ampliar sua grandeur). 

Não se devem economizar metáforas da Roma Imperial – de “volta da vitória” a “lauréis” e o inevitável “ao vencedor o butim” (de guerra), porque isso foi, precisamente. 

Rei Sarkô e Deivizinho Cameron podem não ser parecidos com a linda moça angolana que acaba de ser coroada Miss Universo –, mas não poderiam estar em clima mais “à vontade para regozijar-se na própria aura gloriosa”. Uma volta da vitória na periferia do império – ainda que os vitoriosos não passem de reles procônsules e algumas loas tenham sido impiedosamente ofuscadas pelo fracasso econômico da Europa. 

Ao som dos helicópteros Apache que patrulhavam o Mediterrâneo e escoltado por dúzias de guarda-costas da Polícia de repressão às agitações de rua, o Rei Sarkô sentiu a necessidade de declarar a um mundo que sequer cogita dessa possibilidade, que “o que fizemos foi feito por razões humanitárias. Não houve agenda oculta”. 

Mas por via das dúvidas – e com os dois principais hotéis de Trípoli pululando de empresários/abutres – o presidente do sinistro Conselho Nacional de Transição, Mustafa Abdul Jalil, teve de dizer, fora da agenda: “aliados e amigos” terão “prioridade num quadro de transparência” na divisão do butim. Tantos sumarentos contratos de petróleo e gás (e água e urânio e reconstrução) para meter no saco, e tão pouco tempo! 

Fazendo eco ao Rei Sarkô, Deivizinho Cameron proclamou, bombástico, que “a primavera árabe pode tornar-se um verão árabe”. É versão em código, cifrada, para informar que a OTAN está à disposição para bombardear mais ditadores, até deles não restar nem poeira – sempre que oportunistas “rebeldes” convoquem a cavalaria (europeia) para que exibam credenciais “pró-democracia”, forjadas ou outras. 

O Rei Sarkô até delineou o próximo capítulo: a estrada para Damasco. Caro Bashar, vá providenciando aquela passagem só de ida.

Regras à moda da Somália 

O tour fulgurante do Rei Sarkô/Deivizinho Cameron a Trípoli foi cuidadosamente cronometrado para ofuscar a visita do primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan ao Egito. Mas, no que tenha a ver com a alma da Primavera Árabe – o Egito –, o homem é Recep, não os bombardeadores anglo-franceses da OTAN. 

E pensar que ainda ontem a inteligência britânica e francesa vivia feliz, na cama com o aparelho de segurança de Gaddafi. Pena que Deivizinho Cameron não teve tempo para gozar bons momentos com o comandante militar de Trípoli, Abdelhakim Belhaj – ex-emir do Grupo Líbio Islâmico de Combate [ing. Lybian Islamic Fighting Group (LIFG)], ex-quadro da al-Qaeda, ex-torturado pela CIA, mas, sorte dele, eterno inimigo figadal de Gaddafi. 

Belhaj, por sua vez, perdeu uma grande chance de exigir de Deivizinho Cameron – sem os EUA por perto – desculpas oficiais, dos ingleses, pela tortura e por seis anos de cadeia. Talvez prefira a Corte Criminal Internacional. 

Na Líbia, a OTAN conquistou, de fato, um trecho de estrada salpicado com umas poucas cidades na costa do Mediterrâneo. Ninguém sabe o que está acontecendo, mesmo, no deserto. A agenda real da OTAN é esperar e ver se Gaddafi e suas forças reagrupam-se e rearmam-se no Niger e no sul da Argélia, e começam guerrilha de verdade. Seria perfeito pretexto para que a OTAN fique lá – como no Afeganistão. 

Há também a questão, nada pequena, das centenas, talvez milhares de subsaarianos africanos molestados ou massacrados pelos “rebeldes da OTAN” – o suficiente para garantir que vastas porções da África apóiem ativamente Gaddafi. 

Com a OTAN contando com estender a farra, não surpreende que os amantes anglo-franceses não deem nenhuma, nem a mínima, importância, ao fato de que seu anfitrião, Jalil, prometeu jogar à lata do lixo o estado secular líbio (com a Xaria tornada “principal fonte da lei”). Uma razão a mais, para o ocidente manter-se “vigilante”. Devem-se esperar vastos arranca-rabos. O homem do qual não tirar os olhos é Ali as-Salabi – islamista linha-dura alinhado com Sheikh Yusuf al-Qaradawi. Já lançou guerra contra o primeiro-ministro do Conselho Nacional de Transição Mahmoud Jibril – até aqui a cara dos rebeldes da OTAN, para a mídia global. As-Salabi define Jibril e seu pessoal como “secularistas extremistas” que estão levando a Líbia para “uma nova era de tirania e ditadura”. Quadro da Al-Qaeda, Belhaj – que comanda milhares de rebeldes armados até os dentes – é nada menos que aliado muito próximo de as-Salabi. 

Não há qualquer prova de que o Conselho Nacional de Transição tenha força suficiente para desarmar o atual inferno de várias guerrilhas inimigas, ao estilo do Iraque, em que estão convertidos Trípoli e os arredores. Se o CNT não consegui-lo, a OTAN lá estará, pronta e feliz, para fazê-lo. Nesse caso, ganha quem apostar em que a Líbia será transformada, não em algum Afeganistão 2.0 ou Iraque 2.0, mas numa Somália 2.0. Para resolver tudo? Mandem os Marines e transformem Trípoli em Fallujah. É possível, até, que a transformação garanta que Barack Obama seja reeleito nos EUA em 2012. 

Podem apostar: a farra (trágica) e a jogatina estão só começando. Esperemos, agora, para ver quanto tempo demorarão o Rei Sarkô e Deivivizinho Cameron, para reencenar a volta da vitória – e em que tipo de Trípoli desembarcarão: Kabul, Bagdá ou Mogadicio?

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