domingo, 11 de dezembro de 2011

Verdade e mentiras nas eleições russas


Anatoly Karlin

11/12/2011, Anatoly Karlin, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Anatoly Karlin está concluindo sua pós-graduação em Economia Política em UC Berkeley. Anima o blog Sublime Oblivion.


Apesar dos protestos em algumas localidadess, a Rússia não terá uma “Revolução Colorida”

Enquanto acompanhava os resultados, saltando entre o Twitter e blogs políticos, tinha a impressão de que as eleições de 2011 para o Parlamento russo, a Duma, não trariam novidades. O partido no poder, Rússia Unida, estava, segundo as principais pesquisas do mês anterior, com 40-50% das intenções de voto – bem abaixo do que esperava. Estava longe, portanto, dos 64% de votos que recebera em 2007, quando a economia russa crescia com taxas de Tigre Asiático, e a confiança dos eleitores alcançava o pico. Mas se se consideram os modestos 37% de votos que o partido Rússia Unida recebera em 2003, os 40-50% dos votos que as pesquisas indicavam não seriam a catástrofe que alguns pintavam.

Claro, sempre há os descontentes. Houve uma “manifestação” na Praça Triumfalnaya, na qual havia mais jornalistas que manifestantes, onde alguns dos velhos liberais russos deram entrevistas a um repórter da BBC, em veemente protesto contra “a volta do totalitarismo com roubalheira” (que a Agência Reuters distribuiu para o mundo, em Russia’s Kasyanov slams Kremlin for election ban. O Departamento de Estado dos EUA manifestou “preocupação” sobre violações eleitorais, antes mesmo de os resultados finais terem sido divulgados. E ouviram-se idênticos sinais de idêntica preocupação também de organizações de direitos humanos.

Os protestos espalharam-se pelo país 

O inverno russo está esquentando. Nem tanto, que Moscou apareça coberta de palmeiras à moda da Florida ou adote o alfabeto grego, mas se pode talvez entender o erro que a rede Fox News cometeu em: “Rede Fox News usa vídeos das manifestações gregas, no noticiário sobre as manifestações russas. Simultaneamente, a blogosfera russa, Runet, alimentada pela população russa “plugada”, que é hoje a maior da Europa (ver em: Russian internet biggest in Europe; Will earnings follow?),  foi inundada de “denúncias” de falsificações nas eleições. Milhares de manifestantes saíram às ruas para protestar contra o Kremlin. E, com eles, batalhões de policiais e veículos blindados. 


O debate sobre a legitimidade 

O repente de McCain é reflexo do espírito do momento. Hillary Clinton descreveu as eleições como “nem livres nem justas”. Liberais de direita, como Nemtsov e Gorbachev exigiram que as eleições fossem anuladas. A revista Commentary encheu-se de aproximações inflamadas, partidarizadas, escorregadias entre “o partido dos ladrões e mercenários” (o Partido de Putin, Rússia Unida) e “o Partido do Departamento de Estado” (o Partido Democrata, dos EUA). Jornalistas britânicos revezaram-se em turnos, para comparar os partidários de Putin a ratos  e a gremlins .

Em plano intelectual um pouco melhor, os dois lados têm argumentos válidos. Os liberais de direita disseram que os votos para o partido Rússia Unida chegaram de fato, no máximo, a 40% (para alguns, 25%) e, assim, a maioria do partido seria ilegítima. Que se examinem as milhares de violações denunciadas por Golos – uma organização que monitora eleições, que o Kremlin nunca se cansa de processar judicialmente. Apoiadores do Kremlin responderam que os resultados são muito próximos do que indicavam as pesquisas pré-eleitorais e de boca de urna; que violações, se houve, foram mínimas; além do que, todos sabem que Golos é a mesma organização, patrocinada pelos norte-americanos “promotores de liberdade”, que promoveram as “revoluções coloridas”, ao ritmo de milhões de dólares por ano.

Enquanto a retórica sobe de tom no ciberespaço e nos cafés em Moscou, já suficiente para incendiar muitas eleições futuras, nada se ganha com fazer aumentar o alarido. É hora de meter números e estatísticas num chuveiro gelado.

É um jogo de números 

Num mundo perfeito, uma única violação eleitoral já seria demais – e houve muitas, muitas, nessa eleição: eleitores obrigados a votar, urnas com mais votos que eleitores presentes, showmícios, o de sempre. Mas o mundo não é perfeito e nenhuma eleição é perfeita, nem em democracias avançadas como os EUA.

As eleições presidenciais de 2004, nos EUA, por exemplo, registraram escândalos de compra de votos, de máquinas de voto adulteradas em Ohio, e, em vários distritos eleitorais do Alaska o número de votos foi maior que o número de eleitores registrados. Mas poucos disseram que a eleição de Bush foi ilegítima, porque, embora de modo imperfeito, o resultado oficial não contrariou o desejo da maioria do eleitorado.

E por que, de repente, essa exigência de padrões estreitíssimos de perfeição, que não se usaram no caso de Bush, torna-se questão de vida e morte no caso dos russos? Nem filmes distribuídos por YouTube nem as listas de violações de organizações privadas como Golos são provas de ilegitimidade. É sinal de analfabetismo estatístico extrapolar dados de amostras pequenas e viciosas – o que houve numa ou noutra zona eleitoral, numa ou noutra específica urna, o depoimento de um ou outro amigo “que viu” – e, a partir daí construir conclusões generalizadas para toda uma grande eleição.

Praticamente todas as evidências estatísticas no plano federal confirma a narrativa do Kremlin de que as eleições na Rússia foram legítimas.

A aproximação menos defeituosa que conhecemos, da “vontade do povo” – exceto eleições perfeitas – são os resultados das pesquisas pré-eleitorais e de boca de urna. Se, digamos, várias pesquisas pré-eleitorais e de boca de urna mostravam que 35-40% dos pesquisados respondem que apóiam um determinado candidato, e se esse candidato, apurados os votos, alcançou 80% dos votos, sim, não cabem dúvidas de que houve fraude geral, no sistema; e que, portanto, aquela eleição é ilegítima (aconteceu, sim, na vida real: o eleito foi Aleksandr Lukashenko, eleito em Belarus, nas eleições de 2010). Por outro lado, se as pesquisas de opinião não discrepam entre elas e os mesmos números se confirmam depois de divulgados os resultados – com pequena variação para mais ou para menos –, é absolutamente impossível argumentar e demonstrar que tenha havido fraude sistêmica, em larga escala.

E como se sai a Rússia, nesse teste? A realidade é que, nessas eleições, a maioria da pesquisas pré-eleitorais no plano federal – como em todas eleições no período “autoritário” de Putin em: Are Russian Elections Rigged?: Opinion Polls Speak Louder Than Western Rhetoric – confirmam a narrativa do Kremlin de que as eleições russas foram legítimas.

Das três grandes organizações de pesquisa que tentaram prever os resultados dessas eleições, todas previram vitória apertada do partido Rússia Unida, com um mínimo de votos acima dos 49,4% de votos que saíram das urnas. O partido Yabloko – amado dos liberais e emigrados, e de muitos russos – saiu-se melhor do que o previsto por duas daquelas organizações; e os social-democratas do partido Rússia Justa conseguiram 50% de votos a mais que a média das previsões.

Podem-se questionar os números das agências de pesquisa – que o Kremlin as teria pressionado, para aumentar os números pesquisados? Eu diria que é altamente improvável. Lev Gudkov, diretor do Levada Center, é homem que, nas horas vagas, diz coisas como: “o Putinismo é um sistema de uso descentralizado dos instrumentos institucionais de coerção, seqüestrado pelos poderes que só buscam atender os próprios interesses e objetivos privados, interesses de grupo, de clã.” 

Não sei de vocês, mas, para mim, esse não é comentário que brote dos lábios de algum grande fã de Putin por lá.

As pesquisas de boca de urna mostraram quadro ainda mais conflitante. As três maiores pesquisas de boca de urna mostraram o partido Rússia Unida, de Putin, com resultado inferior ao final (VCIOM previu 48,5%; FOM, 43,1% e ISI 38,1%).

Os números de VCIOM estão dentro da margem de erro e, sim, pode-se dizer que confirmam a legitimidade das eleições russas. Os números de ISI são mais complicados, mas a pesquisa trabalhou, como amostra, com menos de 1/3 das regiões da Rússia e, portanto, é o resultado menos confiável das três pesquisas. E o mesmo vale para a pesquisa do instituto FOM, agência estatal que entrevistou 80 mil pessoas e é a menos ampla, em termos de cobertura territorial. Além disso, os partidos que fazem oposição ao Rússia Unida obtiveram ainda menos votos do que as pesquisas previam: 9% para Rússia Justa; 11% para os Comunistas; 14% para o LDPR, e quase 25% a menos, para o Yabloko.

Diferença de 6 pontos percentuais entre uma pesquisa de boca de urna e resultados oficiais é grande, mas não é rara em eleições limpas. Em 1992, por exemplo, nas eleições gerais na Grã-Bretanha, essa diferença foi de 8,5 pontos percentuais, por um erro no método de amostragem e por causa dos “Shy Tory” (conservador envergonhado ou tímido que não declara o voto) que se recusou a responder a pesquisas eleitorais. Não se pode estender o mesmo benefício da dúvida também ao Kremlin?

O eixo Moscou-Cáucaso, eixo da fraude 

Não, não se pode. A pesquisa de boca de urna do FOM errou também em todos os nove distritos federais e em Moscou.  As diferenças, em relação aos resultados oficiais na região do Volga, no Norte do Cáucaso e em Moscou foram imensas: 9,4; 20,8 e 23,0 pontos percentuais respectivamente.

Também é eloquente que esses inconvenientes detalhes regionais tenham sido imediatamente apagados da página FOM na internet. Por sorte, algumas almas previdentes salvaram a tempo os arquivos, o que me permite citar os dados distribuídos por Alexander Kireev, blogueiro especialista em analisar eleições (infelizmente para nós, em russo)  
O que salta aos olhos é o quanto as discrepâncias parecem confirmar um pouco generoso estereótipo russo – o da inconstância e volatilidade das minorias moscovitas. Na região do Volga, o partido Rússia Unida alcançou seus maiores resultados nas repúblicas das minorias étnicas da Moldávia (92%), Tatarstão (78%) e Bachcortostão (71%). O nível dos desvios no Cáucaso Norte é impressionante: enquanto os russos étnicos de Stavropol deram 49% de seus votos ao partido Rússia Unida, nenhuma república de maioria muçulmana deu-lhe menos que 80% dos votos.

Mas não é que o partido Rússia Unida seja popular ali; os esquerdistas e os nacionalistas do LDPR absolutamente não atraem as minorias muçulmanas conservadoras, e alguns disseram que a estrutura tradicional dessas sociedades – chefiadas por teips e anciãos, nas vilas – encoraja o voto “de repetição”, por padrões conformistas, para conseguir aumentar o número de deputados e seu poder de lobbying.

Mesmo assim, as pesquisas de boca de urna do Instituto FOM sugerem que a verdadeira porcentagem de votos para o partido Rússia Unida de Putin nas regiões muçulmanas do Cáucaso alcançaria 70%, apenas um pouco abaixo dos impressionantes 91% que o partido obteve na Ingushetia e no Daguestão. O homem-forte local, Kadyrov, não se satisfez com simples números à Mubarak; na Chechenia, o partido Rússia Unida alcançou porcentagem decididamente stalinista 99,5%. A parte boa é que as autoridades de Moscou ignoraram o conselho da província mais coesa da Rússia, para que esmagasse os protestos em Moscou, com tanques e soldados.

É ainda muito cedo para falar-se em alguma “Revolução da Neve” ou “Revolução do Repolho”.

Mas nem por isso faltaram os que aceitaram o jogo da fraude eleitoral. Moscou é, para a Rússia, o que Chicago é para os EUA [“Onde há fumaça há fogo: 100 mil votos roubados em Chicago”, em inglês] – cidades que não gozam de boa reputação pela correção e probidade dos seus líderes e gangues. Nas eleições locais de 2009, o partido Rússia Unida obteve votos equivalentes a 20 pontos percentuais acima do que indicavam as pesquisas pré-eleitorais, votos saídos de todos os demais partidos. Nas eleições de 2011, os 44,6% dos resultados oficiais contrastam pouco confortavelmente com os 23,5% previstos pelo instituto FOM e com os 27,6% previstos pelo ISI em pesquisas de boca de urna. Investigação conduzida pelo “Observatório do Cidadão” descobriu que o partido Rússia Unida, em urnas e sessões eleitorais onde não há qualquer indício de fraude ou violação das urnas, obteve 23,4% dos votos; menos que isso, só os Comunistas – computada aí, por ironia, a urna na qual Putin votou.

Mas, sim, sim, há alguns sinais de alerta: as margens de erro são significativas; os resultados do “Observatório do Cidadão” foram obtidos de amostras muito pequenas; e, em relação à pesquisa de boca de urna do FOM, 37% dos eleitores recusaram-se a responder questionários de pesquisa, indicando a possibilidade de um efeito “Shy Edross” – afinal,não é fácil, hoje em dia, admitir-se como eleitor do “partido do totalitarismo com roubalheira”. Mas ainda que se leve tudo isso em conta, é difícil aceitar que o partido Rússia Unida de Putin tivesse menos de 30% dos votos em Moscou. Provavelmente teve cerca de 25% dos votos.

Reforma ou revolução?

Em todos os casos é cedo demais – é, atrevo-me a dizer, ridículo – pôr-se a proclamar o advento de uma “Revolução da Neve” ou “Revolução do Repolho” ou seja lá qual for o nome da ‘revolução’ do dia. Primeiro, não há qualquer dúvida de que, no plano federal, os resultados oficiais parecem bem corretos – em perfeita correlação com o que previam as pesquisas pré-eleitorais, como não se cansa de repetir a iminência parda do Kremlin, cardeal Vladislav Surkov; só 6 pontos percentuais abaixo do que previram praticamente todas as pesquisas pré-eleitorais; e dentro da média das três grandes pesquisas desse tipo.

Tudo isso sugere que o nível agregado de todas as fraudes em toda a Rússia está em torno de 5%, com certeza abaixo de 10%. A Rússia não é Belarus nem o Egito de Mubarak. Com essa taxa de fraudes ou sem, o partido Rússia Unida de Putin venceu as eleições – e nada leva a crer que a vontade do povo russo tenha sido fundamentalmente subvertida.

Quando Hillary Clinton diz que as eleições russas não foram “nem livres nem justas” contradiz abertamente a opinião, inclusive, dos observadores internacionais[2], todos altamente críticos e atentos – como sempre foram, em todas as eleições russas desde que Boris Yeltsin deixou o poder, mas reconheceram que “os eleitores russos puderam exercer seu direito de escolher”. 

Nem a Ucrânia está às vésperas da Revolução Laranja: não há ali nem candidato nem narrativa dominante, nem Tymoshenko nem envenenadores sinistros a postos.

O que a mídia ocidental apresenta hoje como “a única oposição real e independente que Putin enfrenta” são direitistas, liberais pró-ocidente (Nemtsov, Kasparov, Kasyanov, etc.), os quais, em termos eleitorais, se não, também, em termos ideológicos, são tão marginais e periféricos quanto o Partido Comunista ou os Panteras Negras dos EUA. Digam o que disserem e por mais que apareçam na imprensa em geral, a maioria dos russos não os vê nem como patriotas nem como confiáveis, e, no geral, os russos desconfiam muito das intenções dos políticos estrangeiros (norte-americanos) que os apóiam.

Quem queira prova disso, visite a página inosmi.ru (infelizmente, para nós, em russo), blog muito popular, que traduz artigos da imprensa estrangeira e os publica em russo. Alguém imaginou que se trate de um ninho acolhedor para os liberais e liberalismos pró-Ocidente, todos interessados em ouvir notícias da Terra Santa da Liberdade de Imprensa?! Esqueçam. Nada disso. O que os leitores que procuram o blog Inosmi veem são notícias da blogosfera sobre o movimento Occupy Wall Street, sobre a violenta repressão policial, ao lado de uma diatribe, do senador McCain, na qual “detona” a Rússia por não garantir aos cidadãos liberdade de reunião e de manifestação. Difícil não ceder ao cinismo, depois dessa “aula” que a blogosfera russa oferece. E, como se sabe, cidadãos cínicos não se dão o trabalho e o incômodo de fazer revoluções.

Não há dúvidas de que os votos de muitos moscovitas foram desviados – efetivamente – nas eleições de 4/12, e as pessoas estão compreensivelmente furiosas. Nesse sentido, identifico-me com os que protestaram em Bolotnaya nesse sábado. Também é verdade que haver um partido que domina toda a política russa é receita certa de corrupção e instabilidade no longo prazo. 

Mas, apesar disso, muitos russos preferem reformas, a “um putsch russo, sangrento e impiedoso” (como disse um grande poeta russo). Nem querem saber de “revolução colorida”, considerando o pífio resultado que se vê na Georgia, Ucrânia e Quirguistão.

O real significado das recentes eleições na Rússia não é tanto os protestos que gerou, mas a surpreendente emergência do partido Rússia Justa como força política protagonista – um desenvolvimento que, significativamente, está sendo festejado pelo próprio Surkov, para quem sistemas abertos tendem a ser mais estáveis que sistemas fechados (ver em: The splendid victory: Russia’s 20011 DUMA Elections) e um “renascimento da esquerda” em geral.

O Partido Rússia e os comunistas estarão controlando um terço do Parlamento, em oposição ao partido Rússia Unida – reduzido, sim, mas ainda uma força formidável. É possível que, em futuro não muito distante, as eleições desse ano de 2011 na Rússia venham a ser vistas como o momento em que se lançaram as fundações de uma genuína política multipartidária, depois das próximas eleições legislativas, em 2017.



Notas dos tradutores
[1]  Hoje, o senador McCain voltou à carga, pelo Twitter: “#ArabSpring comes to Moscow Russians rally vs Putin, election fraud… AÍ TEM COISA!
[2]  Os observadores internacionais disseram que as eleições russas foram “livres, mas não foram justas”, como se lê em jornal de exilados russos.

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