sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O Islã norte-americano avança no Oriente Médio


Oriente Médio (expandido) - clique no mapa para aumentar
27/1/2012, *MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

O primeiro-ministro do Qatar Xeique Hamad bin Jasem Al Thani está comandando pessoalmente a carga da brigada ligeira na Baía da Tartaruga, em Manhattan, à margem do East River, no prédio da ONU, onde a Liga Árabe passa a bandeira aos EUA e aliados ocidentais para que comandem o assalto diplomático e arranquem da ONU a resolução que autorize a intervenção na Síria [1]. 

Está para começar uma batalha de titãs no Conselho de Segurança, tarde da noite, com todas as escaramuças de uma guerra fria. 

Por ironia da história, pouco antes de subirem as cortinas no Conselho de Segurança da ONU, notícias interessantíssimas começavam a pipocar, vindas dos desertos líbios [2]: a Líbia está rachando ao meio. A tribo Warfallah, pró-Gaddafi, de Bali Walid e das maiores tribos líbias, expulsou de lá a milícia anti-Gaddafi (treinada e equipada e financiada pelo Qatar e seus mentores ocidentais) e, essa semana, formou um governo tribal local. Que Trípoli já “reconheceu”. Isso, além dos tumultos que crescem na Benghazi ocidental e por todo o país, com a insatisfação já impossível de conter contra o governo fantoche de Trípoli, lá instalado pelo Qatar e pelas potências ocidentais comandadas pelos EUA. 

Mas Xeique Hamad já não tem tempo para pensar na Líbia, onde já fez o que podia e de onde seus mentores ocidentais lhe disseram que se escafedesse, porque agora o problema é a Síria. O espetáculo acabou na Líbia, já que o ocidente controla os grandes campos de petróleo do país. E disseram a Hamad que o resto dos desertos líbios podiam ser jogados aos cães. Hamad obedeceu. Tira o sobretudo manchado de sangue, veste uma túnica imaculadamente branca e, no sábado, embarca no avião rumo a New York.

Não é trágico que Hamad e o rei Abdullah da Arábia Saudita, um depois do outro, tenham-se autoarrogado o papel de porta-estandartes da democracia no Oriente Médio muçulmano? A tragédia dos muçulmanos do Oriente Médio está condensada nesses dois patéticos autocratas que, sob as vestes reais, tremem de medo pela própria sobrevivência. Não vá uma avalanche de reformas genuínas desabar sobre seus reinos! Portanto, Hamad e Abdullah farão das tripas coração para perpetuar a dominação ocidental – política, militar, econômica e cultural – na região. 

Conselho de Segurança da ONU
A batalha diplomática que começará hoje à noite em New York tem importância histórica. Rússia e China enfrentarão pressão tremenda, porque estão exatamente no caminho da – e contra a – intervenção militar do ocidente na Síria. Se a coisa chegar até lá, será que vetarão o projeto de resolução e negarão ao ocidente a autorização para atacar a Síria? Eis a grande questão. Em alguns dias, todos saberemos a resposta. 

No fundo, a intervenção clandestina por ocidente-turcos-e-árabes, já em curso, só precisa ser legitimada e levada à conclusão lógica.

Por que os muçulmanos culpam os EUA por suas desgraças? A culpa é exclusivamente deles mesmos, que permitem que gente como Hamad e Abdullah fale pelos muçulmanos. 

Qual o plano de jogo dos EUA? Russia Today ofereceu uma brilhante análise do ABC da chamada “Primavera Árabe”, sucintamente explicada por John Bradley, autor e arabista britânico [3]. Em resumo, o levante no Oriente Médio muçulmano e a cisão entre xiitas e sunitas, artificialmente disparados, estariam criando o ambiente político ideal para semear as primeiras sementes do “Islã norte-americano” no Oriente Médio.

O grande objetivo seria perpetuar a hegemonia ocidental sobre o Oriente Médio muçulmano por mais um século, sob novos arranjos políticos locais. Autocratas como Hamad e Abdullah esperam sobreviver nessa barganha, quando o ocidente afastar-se dali. Se suas tórridas esperanças de sobrevivência são realistas ou não, só o tempo dirá. Meu palpite é que serão descartados como restos de comida num prato, tão logo o ocidente conclua a implantação das forças do Islã norte-americano no Qatar e na Arábia Saudita. 

Não se trata de renascimento muçulmano ou árabe no Oriente Médio. Não se trata de democracia nas sociedades muçulmanas. O levante conhecido como “Primavera Árabe” não é sequer autóctone. Está em curso uma operação cesárea, conduzida cirurgicamente pelo ocidente em terras muçulmanas. É bem possível que o Corão que os muçulmanos do Oriente Médio terão para ler nas próximas décadas seja impresso no ocidente, financiado por Hamad e Abdullah. O mundo muçulmano bem merece espetáculo menos repugnante. 

Uma variante da mesma tragédia está surgindo também na fímbria do Oriente Médio Expandido – no Afeganistão. O Qatar foi trazido por Washington, para repetir a performance no Hindu Kush. Os Talibã governarão Kabul. De diferente, só, que aparecerão reciclados como islâmicos – tão logo despachem para a estratosfera sua forma arcaica de Islã tradicional e passem a praticar o “Islã norte-americano”. 

Ryan Crocker
O embaixador Ryan Crocker tem razão [4]. Não se trata de dividir o Afeganistão. Trata-se de “islamizar” o Afeganistão. De fato, a unidade do Afeganistão é terrivelmente importante para a geoestratégia dos EUA. O Afeganistão deve permanecer inteiro, como entidade geopolítica una no tabuleiro da Ásia Central, com todos os adereços ideológicos de democracia islâmica. É isso, ou todo o grande jogo vira beco sem saída. 

Porque, tão logo a conversão-reciclagem dos Talibã esteja completada sob supervisão de EUA-Qatar, os Talibã serão a vanguarda da mudança nas estepes da Ásia Central para o norte e demais regiões muçulmanas do Paquistão (e das regiões indianas da Caxemira, onde o “Islã norte-americano” ainda não conseguiu fincar pé).

Quando isso acontecer, algo como metade dos vastos espaços territoriais da China habitados por povos não Han (muitos dos quais são muçulmanos) e o soft underbelly da Rússia estarão maduros para a mudança. E Paquistão e Índia que deem adeus às nascentes esperanças de se manterem como estados independentes com autonomia estratégica. Desgraçadamente, também há Hamads e Abudllahs nas elites paquistanesas e indianas. 

Contudo, paradoxalmente, o que os EUA e aliados esperam de Rússia e China (e da Índia e do Paquistão), no Conselho de Segurança, é que se mantenham como audiência passiva, meros assistentes inanimados, de uma empreitada que, afinal de contas, pode ser a nêmese para esses todos – a implantação do islamismo sob controle dos EUA, como força vital, na carne de seus corpos. 

O grande projeto dos EUA é meterem-se profundamente no Oriente Médio Expandido, antecipando um século ao longo do qual a Ásia estará dedicada a interromper 500 anos de dominação global exclusiva. O ocidente não cederá a hegemonia, sem luta. Controlar o Oriente Médio é questão crucial na estratégia global dos EUA. 

Se os EUA não conseguirem enfraquecer Rússia e China, e Índia e Paquistão – o que tentam fazer explorando as contradições mútuas (e esmagando o desafiador regime iraniano, que se rege por valores de justiça e resistência), não conseguirão deter a marcha da história em direção à liderança asiática.

Moscou sabe do que fala, quando diz que a Síria não é problema só da Rússia, quando o Conselho de Segurança da ONU reunir-se hoje para debater uma resolução que abrirá caminho para a intervenção do ocidente que tentará derrubar o governo de Damasco. A Síria é problema também da China – de todos os BRICS e do Paquistão.



Notas dos tradutores

[1]  27/1/2012, Al-Jazeera, UN Security Council discusses Syria crisis 
[2] 27/1/2012, Hurriet News,Libya splits before seeing unity” 
[4]  24/1/2012, The Globe and Mail,U.S. envoy in Kabul denies partition rumours
  
*MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

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