domingo, 8 de janeiro de 2012

Pepe Escobar: “O mapa do caminho do impasse no Afeganistão”


7/1/2012, Pepe Escobar, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

New York, New York – Era uma vez, antigamente, quando preferiam Dubai – a Meca do contrabando. Agora, o destino preferencial dos Talibã passará a ser Doha, Qatar. 

E o Talibã instalará um escritório político no Qatar [1], para poder manter negociações “com a comunidade internacional”, nas palavras do porta-voz dos Talibã, Zabiullah Mujahid.  

O presidente do Afeganistão queria que o escritório fosse instalado ou na Turquia ou na Arábia Saudita. O governo Obama apertou uns beliscões e Karzai teve de aceitar o Qatar. Pior para a “soberania” do homem conhecido informalmente como “prefeito de Kabul”.

O porta-voz do Talibã, Zabiullah Mujahid, informou que está abrindo um escritório político no Qatar

A operação Doha foi negócio, estritamente, dos EUA, Alemanha, Qatar e “representantes” dos Talibã. Doha foi escolhida, especificamente, pelo governo Obama. O conceito de recompensa esteve aí bem visível – em nome da sólida, incondicional parceria que une o Qatar e a OTAN, a qual, por falar nela, está sendo espetacularmente derrotada numa guerra, lá, no Afeganistão.


Em ano de eleições crucialmente importantes, a Casa Branca espera acumular alguns dividendos extras na política externa, incluindo à mesa os Talibã (para um rico banquete de arroz à moda Kabul no Ritz-Carlton, talvez?). Mas e quanto à história real, por trás do alarido?

Aqueles drones, fora daqui! 

Em matéria de sonhar que é e crer que seja, nada vence o AfPak, no pensamento dos EUA. O wishful thinking reina. Washington só fala de “discussões secretas entre os EUA e representantes dos Talibã”. 

De fato, nem são muito secretas. Washington queria que os Talibã renunciassem à luta armada. Os Talibã responderam “Não”. Washington queria que os Talibã renunciassem a qualquer tipo de laço com a al-Qaeda – e, em troca, todos os Talibã presos em Guantánamo seriam libertados. Os Talibã responderam “Vamos conversar”.

Washington pensa-crê que o escritório político em Doha de algum modo isolará o Paquistão, afastando-o das lideranças Talibã. O mulá Omar, como todos os grãos de areia dos desertos do Baloquistão sabem, vive em Quetta, onde não é perturbado pela vigilância ubíqua dos EUA.  

Islamabad não foi consultada sobre o escritório em Doha, e Washington pressupõe que os serviços secretos do Paquistão, ISI, não conheçam cada passo dos personagens envolvidos, porque, dos Talibã, só monitorariam os seus próprios contatos fiéis.

Washington, muito provavelmente, também subestimou Teerã. Os arquitetos da estratégia de Doha parecem ter sido hipnotizados pela visão de Tom Cruise escalando o Burj Dubai, no mais recente filme da série Missão Impossível, para acreditarem que o Paquistão e o Irã poderiam ser postos de lado, em qualquer tipo de acordo sobre o fim da guerra do Afeganistão.

Moscou – que tampouco foi ouvida – não está acreditando na estratégia de Doha. Nem Pequim, como diz um especialista chinês em “Escritório dos Talibã no Qatar pode ser um passo em direção à paz no Afeganistão, mas não é o fim da crise” [2]. E com as relações EUA-Paquistão chegando a novos fundos abismais do poço, depois de repetidas trapalhadas de Washington, o porta-voz dos militares paquistaneses, general Athar Abbas, já definiu o tom: “Doravante, exigiremos relacionamento muito formal, de negócios.”

“As linhas estão traçadas. Nada mais daquele ir e vir do passado, nada mais de interpretarem as regras como bem entendam. Queremos relacionamento formal, com limites bem claros”. 

Tradução: Washington pode dar adeus-para-sempre aos “ataques assinados” da guerra dos aviões-robôs, drones, contra as áreas tribais.

Nesse quadro, inscreve-se a visita à China do comandante do exército do Paquistão – o qual, até ontem, era queridinho do Pentágono. Tudo sugere que Pequim e Islamabad/Rawalpindi já estão coordenando detalhadamente suas estratégias, em relação ao que venha a acontecer em Doha.    

Adeus “Missão Impostor” 

Fascinante será assistir à reação desses “enviados” dos Talibã, quando virem o MIA ­– Museu de Arte Islâmica [3] (blasfêmia?) projetado por I.M. Pei, em Doha. Mas quem, exatamente, são eles?

Ora, pelo menos não poderão comportar-se como completos impostores – como o suicida-bomba que matou um ícone da política afegã, Burhanuddin Rabbani, em setembro de 2011, com bomba escondida no turbante. Ou como o “negociador” Talibã falso que embolsou um punhado de dólares da inteligência dos EUA e Grã-Bretanha, em 2010.  

E quanto ao Supremo Líder, o mulá Omar?

O mulá Omar não está, exatamente, mandando comprar sua passagem para o próximo voo da Qatar Airways. Ao contrário: por ordem dele, domingo passado os Talibã afegãos e paquistaneses constituíram um conselho assessor da Shura, com cinco membros.

Principal decisão: o Talibã-no-Paquistão não mais combaterá contra o exército paquistanês, nem com suicidas-bombas nem com sequestros nas áreas tribais. Todo o poder de fogo dos Talibã paquistaneses passa a mirar as tropas de ocupação de EUA/OTAN no Afeganistão.

O recado do mulá Omar foi claríssimo: “Minha palavra aos Talibã-no-Paquistão. Digo que vocês não esqueçam que o real propósito é combater as forças invasoras no Afeganistão e libertar o Afeganistão ocupado”. 

Só um argumento levaria o mulá Omar a formar uma frente unida no AfPak e lançar a undécima ofensiva de verão contra EUA/OTAN: ter recebido, dos serviços secretos do Paquistão, a promessa de que os Talibã-no-Paquistão não voltarão a ser atacados; e que o Paquistão porá fim, absolutamente, aos ataques dos drones norte-americanos. 

Portanto, se já há uma frente unida dos Talibã no AfPak, pronta a controlar mais território afegão em 2012, do que controlam hoje, o que fazem aqueles Talibã na trilha para Doha?   

Não há melhor pista para conhecer as intenções dos Talibã que uma de suas declarações oficiais: “Desde o início, a posição do Emirado Islâmico do Afeganistão sempre foi pôr fim à invasão do Afeganistão e deixar que os afegãos estabeleçam lá o governo islâmico que prefiram e que não ameace ninguém.”

Em idioma Talibã, “que não ameace ninguém” significa: nada de abrigos seguros para a al-Qaeda no Afeganistão. É o máximo que os EUA conseguirão – se, é claro, os Talibã presos em Guantánamo forem postos em liberdade.

Quanto aos Talibã que andarem pela trilha de Doha, serão os chamados “Talibã do bem” – delírio e miragem que os EUA cultivam há anos. A maioria deles vive em Kabul, protegidos pelo elaborado aparato made-in-USA da segurança de Karzai. 

Fato é que não existe um “movimento Talibã” monolítico. O que se conhece como “os Talibã” é uma “coalizão de vontades” à moda dos pashtuns. 

A rede Haqqani, por exemplo, não tomará o avião para Doha. Mas a facção de Gulbuddin Hekmatyar – através do genro do chefe – já está em conversações com gente da OTAN em Kabul.

Mais uma vez, é instrutivo ouvir a voz oficial do Emirado Islâmico a propósito de “negociações”: “Notícias inquietantes, divulgadas por agências noticiosas e agentes ocidentais sobre negociações, nada têm de verdade e são enfaticamente rejeitadas pelo Emirado Islâmico do Afeganistão” [4]. 

E há ainda o fascinante caso do ex-comandante-em-chefe dos Talibã: mulá Mohammed Fazl [5]. 

Os EUA o entregarão em Kabul ou em Doha – direto de Guantánamo? De carniceiro dos hazaras xiitas no Afeganistão a hóspede de Guantánamo e, em seguida, alto negociador islâmico – eis a carreira do homem, ao longo das eras. 

Tudo isso, se o mulá Fazl for solto – e há aí um grande “se”. Já se percebe uma espécie de pânico em Washington, bem visível nos repetidos desmentidos, segundo os quais não haveria qualquer negociação que envolvesse a libertação de Talibãs presos em Guantánamo.  

The end, beautiful friend[6] 

Doha é o Salve-Rainha. O governo Obama tinha de apresentar alguma coisa – afinal, em maio próximo, haverá a Cúpula da OTAN em Chicago. A Eurozona está implodindo. 2012 será ano de agitação social hardcore em toda a Europa Ocidental. Ninguém mais tem estômago – para nem falar de dinheiro – para o interminável “impasse” no AfPak.   

Pelo menos, o governo Obama não cometeu a estupidez estratégica gigante – alguém aí está contando todas? – de iniciar uma guerra contra o Paquistão.

Apostando em que permanecerá no poder depois de novembro de 2012, o governo Obama sabe que Washington terá de sair de lá em 2014.

O Pentágono literalmente se mudará do Hindu Kush, para conseguir manter, pelo menos, algumas bases do Comando Conjunto de Operações Militares [orig. Joint Special Operations Command (JSOC)] no norte do Afeganistão, de onde possa monitorar China, Rússia e Irã: é item crucial da doutrina de Dominação de Pleno Espectro [orig. Full Spectrum Dominance doctrine]. 

O problema é que os Talibã de modo algum admitirão que ali se instalem postos avançados permanentes do Império de Bases dos EUA. A concessão máxima que farão é romper os laços que os unem à al-Qaeda.  

A Organização de Cooperação de Xangai [orig. Shanghai Cooperation Organisation (SCO)] quer solução afegã para o Afeganistão, com apoio de todos os vizinhos. Os principais membros da SCO, Rússia e China, além de Paquistão e Irã (ainda como membros observadores, mas em vias de tornarem-se membros plenos), absolutamente não querem bases dos EUA na região. E se a SCO conseguir o que quer, Washington terá de dar adeus à ideia de uma Nova Rota da Seda.  

Até 2014, Washington ainda terá de enfrentar as novas regras que o Paquistão impôs às linhas de suprimento, de Karachi para Chaman e para o Desfiladeiro Khyber; e as novas regras que Moscou impôs à Rede de Distribuição do Norte [orig. Northern Distribution Network (NDN). Nos dois casos, quanto mais grosso tenta fala, mais Washington se autoderrota.

Depois de 2014, absolutamente ninguém sabe ainda o que acontecerá. O mais provável é que o Exército Nacional Afegão – constituído, na maioria, de tadjiques – controlará o norte do Afeganistão, treinado e financiado pelos EUA. Essa ideia já começa a circular em Washington, com as tropas americanas assumindo “papel de aconselhamento”, já a partir de 2013.   

Os Talibã – a maioria dos quais são pashtuns – controlarão todo o arco do sudoeste ao sudeste do país, com apoio do Paquistão e da Arábia Saudita.

Mas o Pentágono continua obcecado com a ideia de manter um exército, por “emagrecido” que seja [7], para combater os Talibã... até o Juízo Final?

O que nos leva de volta a Doha.

O governo Bush invadiu o Afeganistão para arrancar de lá os Talibã. Arrancou, mas – imaginem! – a missão não foi cumprida. Os Talibã estão de volta, em grande estilo. Hoje, o governo Obama os convida, mais ou menos, para voltarem ao poder. 

Os linhas-duras do Pentágono absolutamente não suportam a ideia de Washington sair de Kabul, como em versão remix de Saigon 1975 – os helicópteros decolando, em fuga, do telhado da embaixada norte-americana. O governo Obama tenta salvar as aparências. Os fiéis da igreja da Dominação de Pleno Espectro querem suas bases. Nada está decidido, até que o último míssil Hellfire cante – no Hindu Kush, não na agradável Doha. 



Notas dos tradutores

[1]  3/1/2011, Reuters, em: Taliban say Office in Qatar has been agreed(em inglês). 
[2]  4/1/2011, Xinuanet, Pequim, em: Taliban Office in Qtar a step towards Afghan peace but not end of crisis (em inglês).
[3]  Veja a página oficial do museu (em inglês).
[4]  Ver 20/12/2011, MK Bhadrakumar, EUA suplicam que os Talibã negociem”.
[5]  Ver 4/1/2012, MK Bhadrakumar, 2012: ano dos Talibã”. 
[6]  O fim, meu belo amigo/bela amiga. É verso de “The End”, da banda The Doors (Jim Morrison), criada em 1965 (letra original e traduzida e vídeo). 
[7]  Ver 6/1/2012, O novo plano de Defesa de Obama: Drones, Operações Especiais e Ciberguerra

Um comentário:

  1. As consequências da assimetria nuclear
    Por Sued Lima*

    Na década de 70 do século passado, o Brasil desenvolvia secretamente seu programa nuclear para fins militares. Para assegurar-lhe recursos financeiros, estabelecera parceria com o Iraque, que bancava os elevados investimentos necessários em troca de acesso aos conhecimentos tecnológicos brasileiros. O responsável pelo programa na Aeronáutica era o tenente-coronel aviador José Alberto Albano do Amarante, engenheiro eletrônico formado pelo ITA.

    Em outubro de 1981, Amarante foi atacado por uma leucemia arrasadora, que o matou em menos de duas semanas. Sua família tem como certo que o cientista foi morto pelos serviços secretos dos EUA e de Israel, com o objetivo de impedir a capacitação brasileira à produção de armas atômicas. Dando força às suspeitas, foi identificado um agente israelense do Mossad, de nome Samuel Giliad, atuando à época em São José dos Campos, que fugiu do país logo após a misteriosa morte do oficial brasileiro.

    Tais fatos dão credibilidade às reiteradas denúncias do governo iraniano de que seus cientistas estão sendo alvo de atentados por parte dos serviços secretos estadunidense, britânico e israelense.
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    Como previa o embaixador do Brasil na ONU, em 1968, José Augusto Araújo de Castro, quando atuou para impedir a adesão do Brasil ao TNP, o tratado é apenas um instrumento para perpetuar o poder das grandes potências.

    *Sued Lima - Coronel Aviador Ref e pesquisador do Observatório das Nacionalidades

    CONTINUA EM
    http://contrapontopig.blogspot.com/2012/01/contraponto-7189-as-consequencias-da.html

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