quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A PAIXÃO NO TEMPO DO BIG BROTHER


*Urariano Motta

Big Brother 
Eu tenho visto, e as pessoas que me cercam também, aqui e ali jovens que se agarram, e se apertam, e se sufocam aos beijos em público. Agem assim nas filas dos supermercados, nos transportes coletivos, nas feiras livres, nos teatros, em todos os lugares abertos à visitação da gente. Até parece haver uma onda, um vagalhão de ternura que arrasta e assalta os corpos de nossos jovens. É como se o amor estivesse no ar. É como se uma ardente atração fizesse com que se friccionassem amorosa, irresistível e interminavelmente. Como se amam! dizemos de início. Que paixão irreprimível! dizemos mais adiante. Que despudor! dizemo-nos enfim, em silêncio.

A evidência manda dizer que somente observa jovens quem não mais é um deles. Mas consideremos que o não ter mais 20 anos de idade nos deixa mais à vontade, permite à gente refletir melhor sobre os que estão no fogo. Então nos perguntamos: que mal há na exibição da necessidade de uma pessoa que exige, urgente, outra? O escândalo que sentimos diante de tais exibições não é já manifestação de conservadorismo? Não é já, como nos diria um jovem, a expressão de uma inveja, porque já não mais sentimos o fogo doce e vital da paixão? Então nós, que não temos mais 20 anos, mas nem por isso alcançamos o tempo da invenção da lâmpada elétrica, respondemos. Mas aos poucos, como convém a nossas pausas de respiração.

Achamos que assim como na organização da vida social, há fronteiras entre o público e o privado. Isso se estende ao reino das paixões, cremos. Existem as públicas, necessária e indissoluvelmente públicas, como a expressão do pensamento em palavras, em símbolos, em imagens, em música. Um poema, um romance, um relato, ainda que expressem a maior intimidade, aquela mesma que em palavras não saberíamos expressar no cotidiano, esse poema, essa criação, ainda que atinja o âmago do nosso ser, é por necessidade e realização um expressar para o mundo. Que infelicidade seria, para todos nós, a poesia de Mario Benedetti cercada para sempre entre quatro paredes. Que tristeza vil nos alcançaria se não soubéssemos do verbo de João Cabral. Paixões assi m trazem o destino de se tornar públicas. E elas só se realizam na medida mesmo em que as conheçam toda a gente. A criação, quando guardada, fechada por injustificáveis escrúpulos ou descaso, ainda não atingiu a sua força. É botão sem florescer.

O que é diferente, acreditamos, das paixões dos indivíduos que se realizam neles mesmos. Que importa ao distinto público a maneira como amamos a amada na intimidade da nossa cama? Que importa à vida de toda a gente a expulsão de humores, vale dizer, o orgasmo do nosso sexo? Se não fazemos disso a expressão de algo menos físico, se não fundamos nesse ato, perdoem o termo, uma ontologia, que importância tem para o mundo? Um cínico nos diria, com evidente inversão do sentido da pergunta, que muito importa o mostrar o que é bom: “O que é bom é para ser mostrado”. E que o beijar, o abraçar, o devorar, são atos naturais, e, portanto, ao serem mostrados, é bom. Ao que responderíamos: existem outros atos naturais, intestinos, mas que nem por isso devem ou podem em público ser mostrados. É certo que ao respondermos assim, descemos ao rés do chão. Embora a isto nos leve o nível da objeção, diria melhor, da abjeção dos cínicos, tentemos subir um pouco acima do piso. Queremos dizer:

O amor tem um significado que é a própria expressão do humano. Ele se ferramenta, digamos assim, ele transforma em ferramentas a seu serviço tudo o que de bom e de mau ao longo de uma vida, inteligência e sensibilidade somos. O tocar das mãos, dos dedos das mãos, o viajar juntinhos, em silêncio, conversando sem palavras, não é já uma eloquência do sentimento? “Nós nos queremos”, insinuam-se os casais com um ser além até da consciência. Se o amor é tão íntimo, para quê demonstrá-lo?

 Mas alto! Alto lá! Não podemos, em tempos tão raivosamente ferozes, ser tão ternos. É tempo de fogo, de chumbo e de sangue, de catchup, de fast food, de correr e viver veloz, tudo pode sumir num instante, e não podemos esperar de casais jovens o conhecimento de anos. Em obediência, estacamos. Então fazemos a volta, até o ponto mais preciso da paixão. Cheguemos àquele sentimento avassalador que não respeita modos, regras e conveniências. E à sua mostra.

Haveria em tais demonstrações de afeto uma genuína paixão? Sim, concedamos, se não por método, pelo menos em respeito ao princípio de que sem prova não cabe imputar crime a ninguém. Sim, concedamos: a julgar pelas exteriorizações, os jovens estão cada vez mais apaixonados. Que bom! Mas ... permitam-nos a reflexão, esse mal da idade. Essa genuína paixão não estaria vestida do exibicionismo do Big Brother? Vestida, queremos dizer, em roupa que se apresenta ao público, e de tal maneira que, ao ser retirada, desvela um rei nu sem nenhuma majestade. Sim, essa vestimenta, hipotética, é de ouro, e reluz, pelo que se proclama à vista de todos nós. É um Big Brother da paixão, essa roupa. Uma exibição onde os portadores mais simplórios viram celebridades. Sob que atos? Ora, pela exibição do que fazem na cama, no edredom, para toda a gente. É o próprio espetáculo do afeto. Eles não se dizem, nem têm necessidade de dizer, eu te amo. Os lençóis lhes falam, por eles. Se não há uma cama nos supermercados, o que se há de fazer? Se as palavras lhes faltam, então as realizam com a mais brava, ia dizer bravata, das eloquências: agem, com o furor das sugadas no cangote, do amassar dos seios, diante dos olhos de todo nós, numa televisão ao vivo. Nós, que viramos os grandes irmãos, os voyeurs basbaques. “Então isto é a paixão, e eu não o sabia”, dizemo-nos, como um novo Monsieur Jourdain, de Molière.

Refeitos da descoberta, acordamos. Então um demônio nos sopra aos ouvidos que há uma vulgarização do afeto. E vulgar, acrescenta o demo, não somente no sentido de divulgar, de tornar público, ou no significado de que o sentimento da paixão é comum a todos os homens. Mas no sentido mais corriqueiro, vulgar, de algo que desceu de uma instância mais digna, que se acanalhou, sorri o demo. Se o amor, se a nossa paixão é uma pepita guardada, rara, única, para quê exibi-la como um novo-rico, como um bárbaro? Mas aí, a acreditar nessa pergunta-afirmação, entraríamos no terreno que nega ao sentimento que se exibe o status de uma genuína paixão. Façamos então uma última pausa, para concluir.

Imaginemos esses casais, se prosperarem até uma união mais duradoura, imaginemos esses jovens quando as dificuldades da vida bater à sua porta. Queremos dizer, imaginemo-los naquele provável tempo em que o dinheiro para a diversão lhes faltar. Mais grave, imaginemo-los naquele tempo em que a doença lhes bater no domicílio, sem aviso e sem agenda. Pior do que tudo; imaginemo-los naquele tempo em que o fogo da paixão tiver queimado o vigor das melhores forças. Como reagirão? Se o amor se foi, se a paixão queimou até as cinzas, o que é o mesmo que dizer: se os corpinhos sarados perderam a forma, se os apertos, por morte do exterior estímulo, não mais se dão, se um beijo, num supremo esforço, não mais substitui a palavra e o sentimento amor....

“Corta”, diz-nos o diabo. Sabemos por quê ele pula e nos interrompe. Esse final não está no Big Brother.

Enviado pelo autor
Ilustração extraída do Blog do Hélio Aguiar

Urariano Motta* é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

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