segunda-feira, 21 de maio de 2012

Grécia: o fim da linha da “austeridade”


15/5/2012, James Meadway, New Economics Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

James Meadway
Essa crise não é grega. É crise europeia, em duas partes. Primeiro, o crash financeiro de 2008 provocou recessão global excepcionalmente severa. Combinado com os resgates dos bancos, o crash levou a aumento acentuado das dívidas e dos déficits em muitas das grandes economias – inclusive em economias da Eurozona.

Com a arrecadação em queda e o desemprego subindo em 2008-9, os déficits dos governos aumentaram. Para tapar o buraco, os governos tomaram empréstimos, o que os endividou ainda mais. Para países da Eurozona, muitos desses empréstimos vieram de bancos europeus. Os bancos gostaram do arranjo, porque assumiram que seria impossível que algum país-membro da Eurozona lhes aplicasse um calote e, assim, seriam empréstimos de baixo risco. Os governos também gostaram, porque parecia que estivessem conseguindo financiamento barato.

Marcha contra a "austeridade" e a TROIKA
Mas havia um problema. Na década de existência do euro, as taxas de câmbio foram efetivamente fixas entre os países membros, cada um em relação aos demais. Já não havia a opção de uma moeda ser valorizada dentro da Eurozona. A Alemanha, com baixo crescimento de produtividade, fez encolher os salários dos seus trabalhadores – com queda da renda média real durante sete anos. Resultado: a Alemanha tornou-se mais competitiva em relação a outros membros do euro. Normalmente, teria acontecido um aumento na taxa de câmbio. Mas o próprio euro impediu que acontecesse.

O que aconteceu foi que as exportações alemãs pareceram muito baratas para países do sul da Europa. Passaram a importar mais da Alemanha (e do norte da Europa em geral), do que vendiam. Abriu-se um fosso no fluxo do comércio: déficits cada vez maiores no sul, e superávits cada vez maiores no norte – e tudo isso dentro da Eurozona. Déficits têm de ser financiados. E essa é a segunda – e crítica – parte da crise. Para financiar os déficits, os países tomaram empréstimos, explorando o novo sistema financeiro europeu recentemente reforçado. Para Espanha e Portugal, esses empréstimos apareceram como dívidas privadas, ajudando a financiar uma enorme bolha de propriedade, enquanto o aumento dos preços levava endividamento cada vez maior. Para a Grécia, apareceram como níveis altíssimos de endividamento público – os lares gregos pouparam, em vez de endividarem-se, durante o boom. Mas em todos os casos, o total da dívida na economia começou a crescer rapidamente.

O crash financeiro, com suas crescentes demandas de empréstimos, correu diretamente para esse desequilíbrio existente. A fagulha que incendiou a crise foi a revelação, em outubro de 2009, pelo novo governo do PASOK, de que a dívida pública grega era muitíssimo maior do que o governo anterior divulgara. Não é crise de gastos públicos. Espanha e Portugal acumularam superávits consideráveis, gastando menos do que arrecadaram em impostos, até que a crise – diferente do que se via na Alemanha e na França, que continuavam deficitárias. A Grécia gastou menos, em proporção do PIB, no setor público, que Alemanha ou França – apesar de padecer evasão crônica dos impostos dos mais ricos.

Trata-se de crise do sistema financeiro, e do próprio euro. Sem resolver os dois lados desse pareamento perverso, a crise não terá fim.

Dois anos de fracassos

As grandes potências, em tentativas sucessivas para resolver a crise, fracassaram redondamente. Seguiram um padrão definido: com os fundos de resgate, que já chegam a €240 bilhões, destinados a permitir que o estado grego pague seus credores, vem a insistência em medidas de austeridade cada vez mais severas. Sob supervisão da Troika UE/BCE/FMI, sucessivos governos gregos jogaram montanhas sempre crescentes de dinheiro nos cofres dos credores internacionais, ao mesmo tempo em que impunham ao povo grego sacrifícios cada vez mais pesados. O impacto sobre a sociedade foi devastador. Para lembrar apenas um exemplo, a Grécia sempre teve o mais baixo índice de suicídios da Europa. No último ano, o número de suicídios subiu 40%.
 
Os planos da Troika jamais tiveram qualquer possibilidade de funcionar. A austeridade é projeto que se autoderrota. Os cortes nos gastos do governo – e fortes aumentos nos impostos – sugam qualquer potencial de demanda que haja em qualquer economia. Se a economia é fraca – e a grega está muito seriamente fraca – tende a enfraquecer ainda mais, porque demanda baixa leva a vendas cada vez mais fracas, cada vez menos gente empregada e salários cada vez menores. Fixa-se um ciclo vicioso de declínio, como aconteceu quando os governos tentaram a mesma via, nos anos 1930s. A economia grega já encolheu 16% em cinco anos, e o desemprego já chega à estratosfera. E o peso da dívida, em vez de diminuir, só aumenta: dos 130% do PIB no final de 2009, já chega hoje aos 160%.

O único modo de remover uma dívida é pagá-la ou cancelá-la. Os tais “resgates” não fazem nem uma coisa, nem a outra. Eles simplesmente mantêm o fluxo de pagamentos, com juros, com os gregos respondendo ao que exigem os credores. Com a economia em colapso – resultado direto da “austeridade” – esse mecanismo foi-se tornando cada dia mais obsceno: um país posto à míngua, morrendo de fone, mantido vivo pelo artifício dos “resgates” e em exclusivo benefício dos credores. Não surpreende que tantos gregos tenham votado contra os partidos da “austeridade”. Não há absolutamente motivo algum para que algum grego aceite esse arranjo miserável.

Syriza (logotipo)
Syriza, a Coalizão da Esquerda Radical, emergiu vitoriosa, em segundo lugar no 1º turno [das eleições do início de maio] e com 27% dos votos, no 2º turno [6 de maio]. Nas áreas urbanas e de classe operária, Syriza já suplantou o Pasok. A coalizão de esquerda fala de suspender todos os pagamentos da dívida e pôr fim às medidas de “austeridade”, como condição para aceitar participar de qualquer futuro governo de coalizão.

As próximas semanas

Finalmente, se começa a por fim a dois anos de fracasso escandaloso da Troika. A situação é complexa. Sujeito a alta incerteza para os próximos meses, o quadro parece ser o seguinte. A tabela adiante mostra as quantias que a Grécia tem a pagar aos credores até o final do ano.


Pagamentos da dívida grega, 2012 (em milhões de euros)
Maio
Junho  
Julho 
Agosto
Setembro
Outubro
 Novembr
Dezembr
11.546  
  2.991
3.030
9.676
     1.019
    1.171
        85
    2.324
(Fonte: Bloomberg)

A maior parcela inclui os €3,1bilhões devidos ao Banco Central Europeu, a serem pagos dia 20 de agosto. Mas qualquer pagamento antes disso, que deixe de ser feito na data prevista, caracterizará (e desencadeará) o calote.

Hoje, é impossível para o estado grego fazer esses pagamentos e, simultaneamente, pagar os funcionários públicos. Se saldar as dívidas nas datas previstas, o estado grego deve continuar a receber novos fundos de resgate da União Europeia. Até agora, a União Europeia tem insistido em que, para receber os fundos de resgate, a Grécia terá de honrar o Memorando de Entendimento assinado ano passado e que obriga o país a tomar medidas de austeridade muito estritas. Se aquelas medidas não forem tomadas, os fundos não serão liberados, o que forçará a “falência”. É possível, mas está longe de confirmado, embora a União Europeia já dê sinais nessa direção – o primeiro-ministro de Luxemburgo e presidente do Euro Group, Jean-Claude Juncker, na 2ª-feira – que se admitirá algum “afrouxamento”.

Se entrar em situação falimentar, não fará sentido algum que a Grécia permaneça na zona do euro. Os bancos internacionais, ao longo do ano passado, livraram-se dos papéis gregos, repassados para bancos oficiais (como o Banco Central Europeu) e bancos gregos; e fundos hedge “viciados” em papeis de risco são hoje os últimos compradores que restam.

O calote não atingirá com muita força bancos de fora da Grécia; e o Banco Central Europeu pode aguentar as perdas. Mas os bancos que operam dentro da Grécia serão varridos. Terão de ser recapitalizados – stocking up com novos fundos – provavelmente sob estrito controle governamental. Não será possível recapitalizar bancos em euros, se não houver nova oferta de euros – e nem o Banco Central Europeu nem os demais bancos terão qualquer interesse em ofertá-los. A recapitalização em alguma nova moeda, sim, é uma possibilidade, se o Banco Central efetivamente imprimir papel-moeda. Um colapso bancário na Grécia pode levar rapidamente a uma fuga de euros.

As eleições estão previstas para entre 10 e 17 de junho. A Alemanha tem repetido que se, depois disso, a Grécia não conseguir formar um governo, ficará sem receber a próxima parcela de ajuda da União Europeia, marcada para ser paga em junho. Isso, também, levaria a Grécia rapidamente à falência e à porta de saída do euro.


Mas qualquer governo que pague o que deve nos termos e condições previstos – se se conseguir formar algum governo – será, em todos os casos, governo vulnerável, de estado extremamente vulnerável. Será terminalmente dependente de novas subvenções que lhe dê a União Europeia. O déficit primário da Grécia – a diferença entre a arrecadação e os gastos, menos os juros – equivale a 1% do PIB. Não é muito, mas, mesmo assim, precisa ser coberto. Se esse déficit não for coberto, seja como for, o estado, em pouco tempo, ficará sem dinheiro para pagar os funcionários, provavelmente, já em julho próximo. Talvez seja obrigado a emitir promissórias – prometendo pagar em euros, em data posterior – e essas promissórias, por sua vez, começarão, de certo modo, a assumir algumas das funções do dinheiro, passando a ser aceitas em lojas etc. Os euros desaparecerão de circulação, tornados valiosos demais seja para trocar por outras moedas, seja para depositar nos bancos gregos. Assim, como pode acontecer, a Grécia sairia do euro quase por acidente, uma saída de facto. 

São baixas as probabilidades de, nos próximos poucos meses, todos os lados conseguirem negociar meios para sair do imbróglio, de modo a que a Grécia possa permanecer integrada à Eurozona. Apesar de o resultado ser ainda incerto e depender de processos políticos, mesmo que a Grécia saia dos próximos poucos meses e das próximas eleições ainda como membro da Eurozona, nem por isso a crise estará resolvida. A dívida pública impor-se-á acima de qualquer outra consideração; sem esperança realista de que seja paga e com a economia em colapso, a questão de integrar-se ao euro, ou não, simplesmente, reaparecerá.

Contágio e colapso

Em teoria, é possível “conter” a Grécia. A UE e o BCE, entre eles, passaram dois anos construindo uma série de “muros corta-fogo” para bloquear a crise e impedir que se espalhasse para fora das fronteiras gregas, com €750 bilhões teoricamente disponíveis. Os credores privados de antes livraram-se dos papéis gregos, reduzindo ao mínimo a própria exposição. Em teoria, a crise na Grécia poderia ser cercada lá mesmo.

50 centavos de Dracma (moeda grega anterior ao Euro)
Mas essa crise não é crise grega. Espanha, Portugal e Itália são também eles parte do mesmo mecanismo de criação de endividamento, gerado pelas desigualdades do euro. Nos anos do boom do euro, o setor privado na Espanha e em Portugal mergulharam em gigantescas dívidas. Um gigantesca bolha desviou o dinheiro dos financiamentos para a propriedade imobiliária, o que fez subirem os preços – até que, num dado momento, mais de 20% da força de trabalho espanhola estava empregada na construção civil. As dívidas privadas incharam. Quando sobreveio o crash, aquelas dívidas tornaram-se impagáveis.

Os bancos espanhóis estão à beira do colapso; o terceiro maior banco espanhol, Bankia, foi discretamente encampado pelo estado, semana passada. A Itália, enquanto isso, padece as dores do baixo crescimento crônico e de uma dívida do setor público de €1,3 trilhão. Também já caiu na arapuca.

Uma erupção na Grécia pode alastrar-se rapidamente para esses três países – em especial, para a Espanha. Pode começar uma corrida aos bancos, se depositantes em pânico convencerem-se de que os governos não terão como resgatar bancos falidos e decidirem sacar o dinheiro depositado. Ou o mercado de ações convencer-se-á de que nas economias mais endividadas os grandes bancos quebrarão sem que os governos possam salvá-los, o que fará subir as taxas de juro e obrigará também os estados a buscar resgate. Ou investidores privados e especuladores, convencidos de que esses estados não têm como garantir os próprios bancos, tratarão de levar seus capitais para outros pontos do mundo, o que implica fuga de capitais e colapso dos bancos.

Ou, de fato, alguma combinação dessas três possibilidades. As taxas de juro cobradas sobre os papeis dos governos espanhol e italiano já começaram a subir muito, com os corretores começando a temer os efeitos do colapso geral. A agência Fitch, de análise de riscos, anunciou que rebaixará todos os países-membros do euro, se a Grécia sair da Eurozona. As “portas corta-fogo” da União Europeia, o temporário Instrumento Europeu de Estabilidade Financeira [orig. European Financial Stability Facility] e o permanente Mecanismo Europeu de Estabilidade [orig. European Stability Mechanism], parecem capazes de conter a enxurrada – pelo menos, no papel. Na prática, contam, não com fundos reais, mas só com a promessa, dos membros signatários, de que pagarão, se for necessário. Ter em caixa uma promissória não é o mesmo que ter dinheiro em caixa – sobretudo se os que prometeram pagar, como a Espanha, também terão de ser resgatados. Ambos, o instrumento e o mecanismo podem acabar sendo detonados na conflagração geral. Há riscos significativos de que sobrevenha uma segunda e severa recessão.

Os próximos passos

Há duas trilhas principais pelas quais se sai de um crash. Uma é esforçar-se o mais possível para manter-se ligados às formas antigas de trabalhar. É a trilha que a Troika escolheu. Não funcionou, até agora; e jamais funcionará.

A outra é impor ruptura total com o passado que tenha levado ao fracasso. A coligação Syriza está absolutamente certa quando insiste no cancelamento de qualquer novo pagamento da dívida e em que se esqueçam as tais metas de “austeridade”. Nenhuma dessas ideias jamais trouxe qualquer benefício aos gregos comuns, ou à sociedade europeia em geral.

Syriza também acerta ao propor modalidades não ortodoxas de financiamento, como os empréstimos compulsórios, dos que possam emprestar, com juros fixados em níveis baixos. Para impedir o contágio e conter a crise financeira, é absolutamente necessário impor controles sobre o capital – restrições ao livre movimento do capital, diretas ou indiretas, para impedir que o pânico se alastre. Atualmente, até o FMI já aceita que essas medidas sejam eficazes em momentos de crise. Os ricos têm de ser taxados de modo efetivo para cobrir custos; e os bancos têm de ser administrados para atender as necessidades e interesses da sociedade, não do lucro privado.

Em outras palavras, os passos mais urgentemente necessários hoje são os que mais afastem a Grécia, de seu velho sistema econômico falido. O movimento contra a “austeridade” cresce em toda a Europa. A Grécia pode estar bem próxima de começar a empreender esses primeiros passos que a salvarão do naufrágio. Se se constituir ali um governo novo e firmemente anti-“austeridade”, será atacado por todos os lados e sofrerá pressão terrível. Nossa solidariedade é crucial.

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