domingo, 27 de maio de 2012

Movimento “Occupy” continua vivo e forte nos EUA – e em todo o mundo


Embora a imprensa-empresa finja que não vê...

23/5/2012, Arun Gupta [de Salon], Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Occupy Wall Street estava no auge em outubro-2011, quando milhares de pessoas convergiram para o Parque Zuccotti e conseguiram fazer gorar os planos do bilionário prefeito Michael Bloomberg, de varrer a ocupação, sob o pretexto de que haveria ameaça à saúde pública. Daquele ponto até hoje, a impressão geral é que o movimento esvaziou-se e não conseguiu nada parecido com greve geral dia 1º de maio – depois de meses de repressão a passeatas gigantes, de bloqueios e cercos policiais.

A chamada “grande imprensa” é sempre rápida em decretar ritos finais. A rede CNN declarou que “o MayDay gorou”; o New York Post fez rima “Gúd bái, ocupái”; e o New York Times dedicou aos acontecimentos do dia menos de 400 palavras, praticamente todas sobre as prisões em New York City.

Historiadores e militantes de organizações sociais respondem que o movimento Occupy tem de ser visto em termos relativos. Conhecido sociólogo, coautor de Poor People's Movements [Os movimentos de pobres], Frances Fox Piven diz:

“Não há notícia de movimento popular algum que se implante em menos de dez anos. O pessoal é impaciente, alguns falam antes de pensar. Mas o que se vê agora é só o começo, me parece, de um grande movimento. Um, de uma série de movimentos que, vez ou outra, mudaram a história, embora não sejam incluídos no modo como narramos a história dos EUA”.

Para Brooke Lehman, figura central do movimento global contra a transnacionalização das empresas, há dez anos,

“Comparado ao que se viu no passado, o nível de atividade é incrível! Uma geração de ginasianos e universitários, está aqui, recebendo educação radical”.


Outros lembram que houve movimentos de protesto em mais de 110 cidades, no MayDay, de reconhecimento à resistência e à solidariedade dos trabalhadores, o que não é pouco, dada a hostilidade contra o trabalho, que se vê na elite dirigente nos EUA. Ao mesmo tempo, praticamente ninguém nega que o movimento Occupy tem encontrado dificuldades para voltar aos números do ano passado; muitos ativistas admitem, pelo menos em conversas privadas. Alguns dizem que a ação da polícia e a hostilidade da mídia operam como jabs: um soco para desconcentrar, o outro para derrubar; que essa ação coordenada pode derrubar movimentos como Occupy, o que é verdade, como se explica adiante. Mas outros movimentos também foram igualmente atacados por esse tipo de jabs e, mesmo assim, se impuseram. No Canadá, acima da fronteira com os EUA, centenas de milhares de universitários no Quebec mantêm greve militante que dura três meses, contra aumento das taxas escolares, desafiando políticos-feitores, jornalismo de escândalo e a Polícia.

Falta “espaço”

O ponto difícil de ultrapassar, onde o movimento Occupy tropeça é, simultaneamente, a razão de seu sucesso: o espaço ou, como hoje, a falta dele. Entender a significação do espaço político e a incapacidade que Occupy tem demonstrado para reocupá-lo revela por que o movimento está tendo dificuldades para novamente ganhar impulso.

Os norte-americanos tornaram-se tão autocentrados, tão preocupados com a precariedade do emprego, da vida, da moradia, do lazer, das finanças e tão ocupados num espaço virtual online que não para de proliferar, que é fácil esquecer que só a ação coletiva, em espaço físico partilhado, pode mudar a sociedade; e que é assim que se fazem mudanças de baixo para cima. O movimento trabalhista, por exemplo.

A história da luta dos operários de fábricas começou pelo insight de que os capitalistas teciam a corda em que seriam enforcados, ao reunir num espaço comum – a fábrica – todos os operários. Ali os trabalhadores perceberam que tinham interesses comuns e que, juntos, poderiam parar as máquinas do capital. Vale o mesmo para os movimentos estudantis. O espaço educacional confina os estudantes em torno de problemas de todos e metas e soluções comuns. E, no movimento pelos direitos civis para todos, nos EUA, as igrejas, nos bairros onde viviam os negros, também tiveram papel decisivo.

Occupy Wall Street é diferente, na medida em que o movimento apropriou-se de um parque público e o reconfigurou como espaço político. Foi manifestação do conceito central do movimento Occupy: não pode haver democracia política, sem democracia econômica. Sua potência brotou da mesma fonte da qual jorraram a Primavera Árabe, os Indignados na Espanha e o levante trabalhista em Wisconsin – que, pacificamente liberaram espaço público, que passaram a ocupar e governar mediante democracia participativa.

Antes de o contágio social aparecer à tona pela primeira vez na Tunísia, no final de 2010, o principal movimento global de massas ocorrera dia 15/2/2003, no dia de protesto contra a então iminente invasão do Iraque. O problema é que foi só um dia, em movimento que não era especificamente pró-democracia. Bush conseguiu não apenas ignorá-lo (seria um “grupo focal”), mas, além disso, os protestos foram distorcidos como legitimação para os EUA agressores (que foram apresentados como estado que admitia o protesto, ao contrário do estado terrorista de Saddam Hussein).

Colonizados pelo consumismo

Os protestos antiguerra já têm pouco impacto, porque se converteram em reuniões de fim de semana na capital política, marchas por ruas desertas com cartazes produzidos industrialmente, cantos sem entusiasmo e discursos que são amontoados de clichês. É movimento previsível, que os governantes ignoram, porque vivem isolados dos governados por muitos dólares e muitos cassetetes. Mas ter um espaço ocupado, no coração da cidade, que não há força que faça sumir, isso sim, é desafio insistente ao poder do Estado.

Um ativista disse, do acampamento em Wall Street:

“A qualquer momento, alguém iniciava uma marcha até o prédio de Goldman Sachs, e centenas o seguiam.”

A noite de 5/10/2011 foi exemplo espetacular. Depois de uma marcha encabeçada pelos sindicatos, pelo centro de Manhattan, centenas de pessoas apareciam, em várias marchas por todo o distrito financeiro, durante horas. Com tanta gente nas ruas, ouvindo o som do apoio popular nos calcanhares, Wall Street sentiu-se vulnerável e a Polícia da Cidade de New York sentiu-se sitiada.

Manter um espaço continuadamente, usando formas democráticas de autogestão recria os comuns, que permaneceram colonizados, durante décadas, por todo o vaso espectro do consumo – comprar, comer, beber, entretenimento e espetáculos pagos.


Occupy Wall Street atraiu legiões de jornalistas e curiosos, porque era espetáculo absolutamente diferente. Era uma sociedade miniatura que rejeitava o privado, o individualismo e o capitalismo.

A visão de centenas de pessoas que trocavam comida, arte, conhecimento, política, assistência médica, teto, raivas, ideias, habilidades, competências e amor era absoluta novidade em nossas sociedades de consumo – porque nenhuma daquelas trocas se fazia mediante dinheiro (claro que os bens haviam sido pagos por alguém, em algum momento). Dentro das acampadas e ocupações, milhares partilhavam a experiência de viver sob democracia direta, numa sociedade que estavam ajudando a reerguer do fundo do poço.

Essas sociedades democráticas, mais de 300 que pipocaram pelos EUA em outubro de 2011, deram fôlego ao movimento Occupy, levando grande número de recém chegados à participação política a unir-se em  movimento orgânico.

O verdadeiro poder de um movimento social, sejam os dos anos 1960s ou o Tea Party, não está em o movimento recombinar ativistas já ativos em nova formação; está em atrair para si pessoas às quais, antes, a atividade política não chegava.

Nas ocupações, organizadores sociais muito experientes deslumbravam-se com a quantidade de conversas “fortes”, significativas, com gente que, noutros espaços, seriam considerados adversários ou, no mínimo, muito distanciados em termos de origem social e opção política (ou apolítica). Em visita a cerca de 40 ocupações em todo o país, encontrei muitos que se autoidentificavam com conservadores ou Republicanos e, até, alguns membros do movimento Tea Party, que se diziam parte, também, dos 99%.


O movimento Occupy criou o povo – “os 99%” –, não o contrário.

Os campos e as questões políticas variavam muito, mas, com espaço para discussão coletiva, os ocupantes tiveram tempo para mastigar a ideia de que os problemas sociais brotam da concentração de riqueza e poder em mãos “dos 1%”.

Os sem-assistência de saúde, os sem-casa, porque tiveram de entregar as casas aos bancos credores, os desempregados, os algemados ao subemprego, os sem-teto crônicos, os acuados pelas duras leis de imigração, os atolados em dívidas estudantis, os que se opõe à extração desordenada de recursos naturais, ou acossados pelo terror do emprego em grandes corporações desumanizadas ou pela sujeição a um sistema político corrompido pelo dinheiro, encontraram causa comum a defender e puderam unir-se contra o inimigo de todos.

O silêncio da mídia-empresa

Mas não se via ali só a ira ou o ressentimento. Diferentes visões de sociedade também floresceram naquele espaço ocupado. Como disse Michael Premo, de Occupy Wall Street:

“Você acaba sem saber como sonhar, a menos que, às vezes, você tenha algum vislumbre de como as coisas poderiam ser diferentes. A ocupação destravou a imaginação criativa, radical”.

Ver modos diferentes de organizar o trabalho e a vida em comunidade disparou vários projetos por todo o país, como hortas urbanas, centros comunitários, cooperativas de trabalhadores, escolas abertas e ocupação, para moradia dos sem abrigo, de casas e prédios abandonados.


Tudo isso mudou. Embora algumas raras ocupações ainda se mantenham no interior do país – em cidades como Little Rock e Tallahassee – praticamente todas as demais foram expulsas de seus espaços coletivos ao longo dos últimos seis meses. Em muitas cidades, mais significativamente em New York, as assembleias gerais desintegraram-se, porque a prática democrática passa a ser abstração vaga, flutuante, se não houver espaço no qual possa ser ancorada. O espaço ajuda a manter próximas e conectadas as diferentes tendências, porque as decisões brotam de dentro para fora e tem de ser implantadas, igualmente, de dentro para fora, embora conectadas às comunidades alternativas que crescem em torno dos espaços ocupados. Nas cidades nas quais as assembleias continuam, reúnem-se hoje, talvez, um décimo das pessoas que havia no início do movimento. Ruth Fowler, escritora que trabalha com Occupy Los Angeles, diz que:

“...hoje, o movimento Occupy está esquisito. Ficaram aqui os marginais da marginalidade extrema, e os mais brilhantes. Todos os que se situam entre um e outro desses extremos, estão em casa”.

Apesar de novos ativistas terem deixado de chegar às ocupações, o movimento Occupy absolutamente não desapareceu. Por todo o país, continua a existir, defendendo famílias ameaçadas de despejo e impedindo leilões de casas retomadas pelos bancos credores. Há uma campanha nacional para forçar o governo a dividir o Bank of America em vários bancos regionais.

Os estudantes lutam contra aumentos nas taxas escolares e de acompanhamento escolar e a favor de uma moratória para a dívida estudantil. Membros do movimento Occupy estão trabalhando com os sindicatos, na luta contra cortes de salários e benefícios trabalhistas. E muitos grupos de Occupy uniram-se aos movimentos em defesa da assistência pública à saúde e contra perfurações e pesquisa ambientalmente agressivas, feitas por grandes empresas de petróleo e gás.

David Solnit, que trabalha com o movimento Occupy San Francisco, indica uma das razões pelas quais há a impressão generalizada de que Occupy esvaziou-se:

“Todos os movimentos populares têm momentos de mobilização de massa e momentos de refluxo... Ainda nos falta uma régua mais precisa, que os números de participantes em passeata e de acampamentos em espaços públicos, sobretudo porque os números que se divulgam são divulgados pelas empresas de mídia que, todas, são propriedade do 1%.”

Em termos mais simples, as empresas de imprensa tendem a reduzir a importância de um movimento que é anticorporações e que, em alguns casos, gostaria de vê-las desaparecer completamente do mapa. Estudo de dois sociólogos aponta também nessa direção. Em pesquisa realizada em mais de 2.200 veículos da imprensa escrita nos EUA, Jackie Smith e Patrick Rafail constataram que a cobertura dos movimentos Occupy caiu a um terço desde novembro, apesar de ainda haver centenas de grupos Occupy ativos, e milhares de projetos de organização social e atividades que são extensões do MayDay. E um dado ainda mais esclarecedor: desde o outono, a cobertura que os jornais impressos dão aos problemas da desigualdade social nos EUA foi reduzida em cerca de 70%.


O estado repressor

Pode-se discutir muito se o movimento Occupy continua vivo e efetivo ou não. Mas não há como não ver que as desigualdades de renda e riqueza alcançam hoje picos históricos nos EUA; e que 2/3 da população norte-americana – e 55% dos Republicanos – dizem que há conflitos “muito fortes” ou “fortes”, no país, entre “os ricos e os pobres”, segundo o Pew Research Center.

O silêncio da mídia acoberta também as ações de repressão policial. De fato, a violência da repressão é também medida de sucesso do movimento, porque mostra o quanto o estado e os governos o veem como ameaça:

·       Em Oakland, a Polícia usou um tanque, contra manifestantes, no MayDay.
·       Chicago aumentou as penas impostas a manifestantes em espaços públicos e tornou mais difícil obter credenciais de imprensa, nas vésperas da reunião da OTAN (contra a qual se previam muitos protestos).
·       Funcionários da University of California estão processando 11 estudantes e um professor de Poesia, ameaçados de serem condenados a 11 anos de prisão e multas de um milhão de dólares, por participação em manifestações pacíficas, contra o Bank of America.
·       Mais grave que isso, o FBI, criado no ambiente pós I Guerra Mundial e do medo dos “vermelhos”, está voltando a usar velhos truques. Servindo-se das mesmas técnicas que usa para envolver muçulmanos em “complôs terroristas”, o FBI prendeu cinco anarquistas em Cleveland, e acusou-os de participação num plano para explodir uma ponte.
·       Recentemente, um ativista em Salt Lake City, denunciou que três agentes do FBI invadiram sua casa, sem mandato, perguntando pelos nomes de pessoas que estariam planejando protestos anti-OTAN em Chicago.

A repressão visa a impedir que Occupy conquiste espaço, o que o romancista Arundhati Roy, há meses, já previra que aconteceria:

“O mais difícil para o movimento [Occupy] será ocupar e manter seu território, num estado poderoso e violento como os EUA”.

Desde março, Occupy Wall Street tentou, por quatro vezes, retomar espaços públicos em Lower Manhattan; quatro vezes foram violentamente atacados pela Polícia. A tentativa mais recente, na noite do May Day, Wall Street foi tomada por gigantesco contingente de policiais, que ameaçavam de prisão qualquer transeunte que lhes parecesse “protestador?

Deixe marinar

Só o cinema e do vídeo dão ideia justa das calçadas e ruas cobertas de milhares de policiais em uniforme antitumultos, unidades de vigilância, esquadrões de atiradores de elite, investigadores, policiais antichoque, policiais de rua, comandantes em uniformes brancos, falanges de motocicletas policiais, quatro helicópteros da Polícia e legiões de veículos, automóveis, SUVs, ônibus de transporte de policiais, caminhões, todos com luzes e sirenes de emergência ligadas.Tudo isso, contra alguns poucos milhares de pessoas, a maioria jovens, reunidos em assembleia democrática, animados por uma frágil esperança de que conseguiriam recriar a magia de Occupy Wall Street.

Passei horas na área com outros jornalistas, e fui ameaçado cinco vezes de prisão. Mas não vi nenhum relato, na grande mídia, daquela ostensiva mostra de força policial. Mesmo assim, apesar do duro punho do estado, que tantas vezes se vê bem claro na narrativa jornalística, os movimentos populares, algumas vezes, escapam pelas brechas e triunfam. Aconteceu no levante popular no Egito. Multidões em grande número e organização, conseguem fazer o estado recuar e, às vezes, conseguem por abaixo toda complexa construção do poder. Aconteceu também dia 14 de outubro, quando Occupy Wall Street reuniu muita gente, aliados e, até, alguns veículos da grande mídia, para forçar o prefeito Bloomberg e a polícia a desistir da ameaça de expulsar a ocupação.


A grande questão para Occupy é como construir um sistema dual de poder, como os ativistas egípcios fizeram, ao longo de anos, com sindicatos revitalizados, movimento organizado contra a violência policial e jovens e mulheres politizadas das microempresas que existem em grande número nas áreas urbanas do Cairo. Para tudo isso é preciso organização, o que também nos leva de volta à questão do espaço. A alienação, a fragmentação e a suspeita são tão difundidas na sociedade norte-americana, que as pessoas precisam de zonas de segurança onde possam encontrar-se e partilhar experiências e as próprias histórias, ouvir e debate, criar laços, forjar elos de mútua confiança e organizar a ação.

Os locais nos quais os norte-americanos reúnem-se em grandes números, como parques, praças, fábricas, shopping centres, locais de trabalho, estádios, escolas e locais de culto são hoje, praticamente todos, espaços privatizados e sujeitos a estrito controle pela polícia. O sucesso futuro de Occupy depende hoje de encontrar – ou de inventar – formas de espaço nas quais se possa reproduzir.

Até que as encontre ou invente, Frances Fox Piven acerta ao dizer que os movimentos populares precisam de uma década, ou mais, para gerar efeitos. Passaram-se 22 anos entre a marcha fracassada de Phillip Randolph em 1941, em Washington, e a marcha de Martin Luther King Jr, em 1963, que marcou o fim das leis de segregação racial nos EUA. Transcorreram dez anos, desde a primeira marcha antiguerra em 1965, até o fim da Guerra do Vietnã. E mais de 20 anos, até que o movimento de LGBT visse o presidente dos EUA declarar-se favorável ao casamento homoafetivo.

Foram anos de organização sindical, antes das grandes greves de 1937 e seus sit-ins (que também são formas de ocupação), que conquistaram direitos de negociação coletiva para os sindicatos dos trabalhadores nos EUA. O movimento Occupy está só começando.

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