terça-feira, 31 de julho de 2012

A vida real das empreguetes



Publicado em 31/7/2012 por Urariano Motta

No site da telenovela Cheias de Charme podemos ler as últimas notícias das domésticas que se transformaram em “empreguetes”:

“Penha – A rainha do Borralho continua com seu visual sensual com vestidos e calças colantes. Nos cabelos, a equipe de caracterização optou por alongar com apliques e clarear a cor, conferindo um look mais produzido e elegante. Uma coisa nova na produção da personagem de Taís Araújo, é que agora os acessórios estarão em alta. Brilho, cintos com ferragens douradas, argolas… Penha vai andar cheia de bijous como aneis e pulseiras, sem falar nos óculos, que a bonita não tira mais do rosto.

Rosário – A líder das Empreguetes adotou um look popstar total. Os cabelos ganharam um tom loiro bem aberto e também ganharam alongamento. As madeixas perderam um poucos dos cachos para ganharem um estilo escovão, mas sem ser liso total e sim, com movimento. Saias e shorts curtos, jaquetas de paetês, no estilo pop rock, continuam no armário da gata, que é fã das cores fortes como o roxo, preto e dourado.

Cida – Essa, finalmente, virou Cinderela. A gata abriu mão das longas madeixas para adotar um visual elegante e romântico, ao mesmo tempo. Nas pontas, com cachos levemente abertos, mechas mais claras, fazendo um contraste com o resto do cabelo. Cida continua fã dos tons pasteis, mas com uma pitada de modernidade. Óculos também serão o tchan do visual da morena. O modelo ‘gatinha’, famoso nos anos 50, e que voltou repaginado, caiu como uma luva no rosto da personagem.

Ah, não esquecemos o salto alto! Cada uma, em seu estilo, usa e abusa dos ‘altões’ e não perdem o rebolado. Afinal, um salto alto faz toda diferença no visual de uma mulher, não é gente?”.

Diferente do que escrevem os novelistas da televisão, que pelo poder do veículo levam o Brasil a crer em seus (perdoem os adjetivos, mas não vejo outros) irresponsáveis e levianos delírios, diferente disso, o escritor e operário Valter Fernandes compôs uma vida de doméstica que não se vê nas personagens de Cheias de Chame.

É claro, ele não está na Rede Globo, nem tampouco entrou no mainstream. Melhor então trazer para estas linhas uma apresentação que fiz dele e do seu livro Joana.

Valter Fernandes é de profissão eletricista. Além de cuidar como poucos, como raros trabalhadores, de automóveis, porque é um profissional competente e honesto, Valter cultiva e ama a literatura. Em outro livro ele assim se apresentou: “Nasceu em 27 de setembro de 1960, no Recife. É filho de Josefa Maria da Silva e de pai ignorado”.

Já se notava ali que ele não escrevia por brincadeira ou vaidade oca. Já ali pude notar que a devoção de Valter Fernandes ao ofício literário era e tem sido um estímulo a todos os demais poetas, eletricistas, trabalhadores de todas as oficinas. Até mesmo dos trabalhadores das oficinas que se julgam mais altas, as bancadas e oficinas literárias. Pois o que ele faz da sua vida, as conexões que esse autor realiza entre o positivo e o negativo nos serve a todos, eternos meninos, eternos aprendizes, poetas e escritores que todos somos em construção.

Na quarta capa do livro Joana, ele nos fala:

“Esta é mais uma obra de Valter Fernandes. Desta vez, uma novela, na qual o autor relata a vida de uma ex-empregada doméstica, que saiu de casa ainda quando criança para trabalhar no que se dizia então ser ‘trabalho em casa de família’… Uma trajetória de luta e sobrevivência, de amores mal resolvidos, enganos e esperanças. Um mundo traiçoeiro, egoísta, místico e machista, onde sobrevivia dignamente quem fosse capaz de enfrentar as adversidades sem olhar para trás”.

E com razão, como veremos. Olhem o capítulo segundo, por exemplo:

“Alaíde conseguiu um emprego em uma casa de família. Porém não dura muito tempo, porque tem um surto de loucura. A expulsão de casa por seu pai, a covardia do namorado e a vida nas ruas mexeram com a cabeça daquela pobre mulher. Achava que o sobrenatural invadira seu mundo. Sentia-se tocada, porém não via quem a tocava, sentia-se perseguida, tinha alucinações constantes…”

“Era comum, naquela época, famílias que tinham melhor poder aquisitivo admitir crianças como empregadas em suas residências, alegando que iriam cuidar delas como se fossem suas filhas. No entanto, elas trabalhavam duro, sendo tratadas como verdadeiras escravas, raro era o lar que cuidasse delas com dignidade”.

Joana é uma novela em que Valter Fernandes conta a vida de empregadas domésticas, a partir do ponto de vista das empregadas domésticas. Este é um mérito incomum, que eu nunca vi em qualquer outro livro da literatura mais culta, nem mesmo em Flaubert, em Um coração simples. No entanto, essa magnífica novela, quando comparada ao relato de Valter Fernandes, nos chega como obra de um déspota esclarecido.

O livro Joana extrai o seu maior valor da verdade que conta. E o mais importante: há um mundo, no escrito pelo autor, que jamais foi visto. Eu quero dizer: o mundo visto a partir dos olhos das empregadas domésticas. Notem: não é questão do tema, do assunto, de uma criada ou empregada doméstica. Na literatura, grandes escritores já escreveram sobre as empregadas domésticas.

A questão não é de tema. Os escritores que se ocuparam até hoje sobre o mundo das empregadas falaram sem os olhos das empregadas – eles falaram a partir dos olhos de pessoas que não são empregadas. Esta é a maior e melhor qualidade de Joana. Valter Fernandes desentranha a violência, as barbaridades que se cometeram e se cometem até hoje contra as domésticas, que são as novas escravas, que continuam a escravidão.

Essas mulheres ninguém vê. E quando foram notadas pela literatura, foram sempre observadas pelos olhos de pessoas que se compadeciam da sua sorte. Piedosos e bem intencionados corações. No caso de Joana, há uma informação nova: aqui está o depoimento de um irmão, de um filho de uma empregada, que sofreu o que elas sofrem e sofreram. Isso é fundamental. Dizer mais o quê, leitor? Neste livro conheci coisas que eu ainda não sabia.

Com as palavras acima apresentei o livro de Valter Fernandes, que narra a pessoa de Joana, uma empregada que não canta nem poderia cantar Ex mai love:


­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­O livro de Urariano Motta publicado pela Boitempo, Soledad no Recife, já está à venda em versão eletrônica (ebook). Para comprar, clique aqui ou aqui.

­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­Urariano Motta é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

Artigo enviado pelo autor

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.