quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Cessar-fogo põe fim aos ataques de Israel a Gaza




Baby Siqueira Abrão
Brazilian journalist - Middle East correspondent
Jornalista brasileira – correspondente no Oriente Médio
Skype ID: alo.baby
P. O. Box 1028, Ramallah, West Bank


São pouco mais de sete da manhã na Palestina. As comemorações nas ruas de Gaza, pelo cessar-fogo intermediado pelo Egito e assinado ontem no Cairo, terminaram há algumas horas. Não se veem mais adultos e crianças – um público predominantemente masculino – comemorando pulando, dançando, com as bandeiras da Palestina e do Hamás nas mãos. Todos foram para casa. Mas ninguém conseguiu dormir.

Caças F16, helicópteros Apache e drones sobrevoaram Gaza durante toda a noite e a madrugada. É a versão sionista do conceito “cessar-fogo”: eles suspendem os bombardeios, mas mantêm a tortura física e psicológica. O barulho das aeronaves lembra aos moradores da faixa costeira palestina a tragédia (mais uma) da perda de 162 vidas em oito dias de ataques contínuos e simultâneos, vindos do ar e do mar. Mísseis, bombas e balas eram atirados ao mesmo tempo no norte, no centro e no sul de Gaza, matando civis – a maior parte deles composta de crianças, mulheres e jovens –, arrasando moradias, prédios públicos, sedes dos meios de comunicação local e internacional, destruindo a já carente infraestrutura de serviços gazense, ainda não recuperada do assalto militar israelense de 2008-2009, a operação Cast Lead.

Além dos bombardeios e das mortes que eles provocaram, a população de Gaza teve de suportar longos cortes de energia elétrica, de água, de telefonia fixa e móvel. Nos hospitais, faltam medicamentos para atender aos milhares de feridos. Muitos foram levados para o Egito porque não havia como tratar deles em Gaza. Poucos carros nas ruas, durante os oito dias de massacres, permitiram que o combustível enchesse os tanques de ambulâncias e carros de bombeiros, que não tiveram parada em momento algum. Jornalistas, cinegrafistas e funcionários de hospitais, enrolados em cobertores, dormiam em seus locais de trabalho, incapazes de dar conta da demanda de atendimento médico e de notícias.

Mesmo assim, hoje Gaza tenta voltar à normalidade. Conversas, barulho de carros nas ruas, buzinas, ruídos típicos de consertos e de trabalho, vozes infantis enchem o ar, tirando um pouco da crueza do forte zumbido dos aviões. Mas crianças agora órfãs, viúvas e viúvos recentes, pais sem filhos e filhos sem pais permanecem silenciosos em seu luto, em dor profunda talvez pelo resto da vida.

Os motivos da guerra

O que levou Israel a mais uma ofensiva militar a Gaza? A proximidade das eleições e a necessidade de Benjamin Netanyahu garantir a vitória, dizem alguns. Argumento fraco, uma vez que as pesquisas indicam que o atual primeiro-ministro tem ampla maioria das intenções de voto. Mesmo assim, pesquisa do jornal israelense Haaretz indicou que praticamente toda a nação israelense – entre 84% e 90% – aprovou a ofensiva contra Gaza. Ofensiva que teve por objetivo testar novas misturas químicas na população de Gaza, alegam outros, e estes têm, sim, parte da razão: as queimaduras e os ferimentos das vítimas sugerem o uso de novas fórmulas, experimentadas em campo. Como já demonstrei antes, baseada em documento idôneo, os habitantes de Gaza são cobaias de Israel para testes de armamentos e armas químicas.

Schlomo Sand
Há outros motivos, porém. A ampla maioria de palestinos que hoje vive na Palestina e em Israel é motivo de preocupação[1] para os sionistas. Israel quer a Palestina inteira para constituir seu “Estado judeu”, e não poderá tê-lo com maioria palestina, muçulmana e cristã. Lembremos que o judaísmo é uma religião, não a designação de um povo. Como o historiador israelense Schlomo Sand já demonstrou, em A invenção do povo judeu, não apenas a noção de “povo” é recente, e ainda indefinida, na historiografia, como a ideia de “povo judeu” surgiu com o sionismo, no século XIX, como necessidade política, para justificar a tomada da Palestina. Uma justificação insensata, pois não se tira um povo de seu país, muito menos à base da força e das armas – o método usado pelos grupos paramilitares sionistas para massacrar e expulsar os palestinos de suas casas e terras, em especial depois de 1947, quando a Assembleia Geral da ONU, pressionada pelo sionismo, recomendou a partilha da Palestina. Partilha, lembremos, que não se consumou na ONU e sim em campo, uma vez que os sionistas já haviam eliminado, com matanças e expulsão, a maioria dos palestinos, confiscando a Palestina para abrigar Israel.

Ilan Pappé
Os sucessivos ataques a Gaza fazem parte desse amplo contexto, que o historiador israelense (hoje apátrida) Ilan Pappé denominou “limpeza étnica”, usando um termo menos agressivo do que “genocídio”. Mas é de genocídio que se trata. Basta procurar a definição de genocídio na legislação internacional e ver-se-á que é exatamente isso que os vários governos israelenses vêm fazendo com os palestinos há mais de 60 anos: a eliminação, ou a tentativa de eliminação, de um grupo étnico.

Iniciada em 14 de novembro, com o assassinato de Ahmed al-Jaabari, comandante militar do Hamás com quem Israel negociara, com a mediação do Egito, mais uma das incontáveis tréguas quebradas pelos israelenses, a operação Coluna de Nuvens [2] matou sobretudo mulheres, crianças e jovens. Mulheres mortas não dão à luz; crianças e jovens assassinados não se tornam adultos, não podem ter filhos nem renovar seu grupo social à medida que os mais velhos vão perdendo as forças e perecendo.

Já a poluição ambiental causada pelas substâncias tóxicas atiradas com bombas e mísseis executam o genocídio a longo prazo, envenenando a natureza e os animais, incluindo os humanos. Não à toa, Gaza hoje tem um número elevado de crianças e mulheres com câncer e poucas possibilidades, em consequência do bloqueio israelense, de proporcionar-lhes tratamento eficaz. Isso significa ainda mais vidas humanas perdidas – ou eliminadas – não só pelos ataques massivos, mas também por assaltos feitos em base quase diária por Israel a Gaza.

Condenação internacional

A notícia de mais uma ofensiva militar israelense a Gaza levou milhões de pessoas às ruas, no mundo todo. Convocadas às pressas pelas redes sociais, as manifestações reuniram ativistas que entoavam palavras de ordem e levavam cartazes com dizeres que devem ter deixado o governo israelense irado. “Israel, Estado terrorista”, “Do rio [Jordão] ao mar [Mediterrâneo], a Palestina será livre”, “Saiam da Palestina, sionistas” foram os mais leves e publicáveis. Essa pressão da sociedade civil internacional, que não descansou um só instante para deter a matança em Gaza, foi fundamental para o cessar-fogo, garantem seus patrocinadores, Egito e Estados Unidos. Passeatas (em São Paulo, foram iniciativa da Frente de Defesa do Povo Palestino, que reúne dezenas de entidades pró-Palestina, de mulheres, sindicatos e associações profissionais), e-mails e telefonemas a congressistas, ministros e governos, cartas abertas, postagens nas redes sociais, em blogues e na mídia alternativa formaram uma corrente de solidariedade planetária a Gaza.

Incapazes de deter a avalanche de apoios aos palestinos, os sionistas insistiram na justificativa que vinham dando desde antes de a Pilar de Nuvens ser iniciada: “autodefesa” contra os “terroristas do Hamás”. Há cerca de 16 brigadas em Gaza, mas Israel não as cita porque associar as palavras “terrorismo” e “Hamás” faz parte da estratégia de propaganda destinada a satanizar o grupo islâmico de resistência palestina.

Os sionistas usam os foguetes Qassan atirados no sul de Israel pelas brigadas de Gaza, em geral em locais desabitados, como desculpa para a prática da guerra. Calam-se, porém, sobre os mísseis, as bombas e as balas que atiram praticamente todos os dias na população palestina, e que provocam a reação das brigadas. No caso da Coluna de Nuvens, a responsabilidade é de Israel, que em 5 de novembro matou um garoto com deficiência mental que sem querer se aproximou da zona-tampão de Gaza. Depois foi a vez de garotos de 12, 13 anos que jogavam futebol num campinho improvisado na rua onde moravam. É impossível que esses meninos representassem algum risco para Israel, mas mesmo assim seus soldados os abateram a tiros.

O ataque de uma potência ocupante a uma população ocupada é expressamente proibido pela IV Convenção de Genebra. Além disso, como lembrou o Tribunal Russell em carta que exige o embargo militar a Israel, “a tentativa de justificar esse uso ilegal de força militar beligerante e desproporcional como “autodefesa” não passa por escrutínio legal ou moral, pois Estados não podem invocar a autodefesa por atos que servem para defender uma situação ilegal que eles mesmos criaram [3].

Além disso, ao classificar o Hamás como “terrorista” e ao pressionar para que outros países, como Estados Unidos e membros da União Europeia, também o considerem assim, Israel viola outro princípio da legislação internacional: o do direito que os povos ocupados têm à resistência armada. Há uma resolução da ONU, a 3070, que se refere expressamente ao povo palestino (os destaques são meus):

A Assembleia Geral

[...]

Ciente da importância do reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e da rápida concessão de independência a países e povos coloniais [...]

Perturbada com a contínua repressão e com o tratamento inumano infligido aos povos ainda sob dominação colonial e de outras nações e subjugação estrangeira, incluindo o tratamento inumano de pessoas aprisionadas em consequência de sua luta pela autodeterminação,

Reconhecendo a necessidade imperativa de colocar logo um fim ao controle colonial, à dominação e à subjugação estrangeira,

1. Reafirma o direito inalienável à autodeterminação, à liberdade e à independência de todos os povos sob dominação colonial e de outras nações e sob subjugação estrangeira [...]

2. Também reafirma a legitimidade da luta dos povos por libertação da dominação colonial de outras nações e da subjugação estrangeira por todos os meios à disposição, incluindo a luta armada

[...]

6. Condena todos os governos que não reconhecem o direito dos povos à autodeterminação e à independência, em particular os povos da África [...] e o povo da Palestina; [...]

Repare-se que o texto fala em “reafirmar a legitimidade da luta dos povos [...] por todos os meios à disposição, inclusive a luta armada”, o que significa que em outros documentos e resoluções a legitimidade da luta armada já havia sido afirmada. Assim, tanto o Hamás como as demais brigadas de Gaza estão dentro da lei. Fora da lei, como se acabou de demonstrar aqui, e por violar convenções, leis internacionais e centenas de resoluções da ONU, está Israel.

Fim do bloqueio?

Mohammed Kamel-Amr
O cessar-fogo foi negociado entre Israel e o Hamás – ou, mais precisamente, entre o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e o primeiro-ministro do governo de Gaza, Ismail Hanyeh – com a intermediação do presidente do Egito, Mohamed Mursi, e de seu ministro das Relações Exteriores, Mohammed Kamel-Amr. O documento final foi assinado no Cairo, para onde acorreram o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon e a secretária de Estado estadunidense, Hillary Clinton, representando os interesses de Israel.

A euforia pelo cessar-fogo foi tamanha que poucos se lembraram de dar destaque à alínea C do artigo 1o do acordo:

Devem-se abrir todas as passagens e facilitar o movimento de pessoas e o trânsito de bens e produtos e devem ter fim todas as restrições à livre movimentação dos residentes em áreas de fronteira. Os procedimentos para implementar essas medidas devem começar a ser analisados e definidos 24 horas depois do início do cessar-fogo.

Caso os governos de Israel fossem sérios, o bloqueio desumano e ilegal imposto a Gaza começaria a cair hoje, 22 de novembro, à meia-noite. Alguém duvida de que Netanyhau vai encontrar um modo de se safar dessa determinação, assinada por seu governo?




Notas de rodapé

[1] De acordo com os registros oficiais de Israel, há atualmente, em toda a Palestina, incluindo Israel, 12 milhões de habitantes, dos quais 6,1 milhões são palestinos e 5,9 milhões são israelenses. O governo de Israel não faz propaganda do fato, descoberto por acaso por um jornalista israelense ao ler uma reportagem do caderno de economia do jornal Haaretz. Juntem-se a esses 6,1 milhões oficiais os mais de 7 milhões de refugiados e chegar-se-á a 13,1 milhões de palestinos com direito, reconhecido internacionalmente, a viver em seu país. Isso significaria o fim de Israel como “Estado judeu” e o estabelecimento de uma nação multiétnica, para todos os que nela vivem, onde hoje existem a Palestina ocupada e Israel.

[2] Coluna de Nuvens é nome retirado de Êxodo 13:21-22, livro da Torá ou Antigo Testamento que narra a saída dos judeus do Egito, liderados por Moisés: “E Iahveh ia adiante deles, de dia numa coluna de nuvem, para lhes mostrar o caminho, e de noite numa coluna de fogo, para os alumiar, a fim de que caminhassem de dia e de noite. Nunca se retirou de diante do povo a coluna de nuvem durante o dia, nem a coluna de fogo, durante a noite” (A Bíblia de Jerusalém. 6 reimp. São Paulo: Paulinas, 1983. p. 125.)

[3] Trata-se do princípio ex injuria non oritut ius, consagrado pelo direito internacional. Segundo esse princípio, um direito legal não pode nascer de um ato ilegal.

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