sábado, 3 de novembro de 2012

Pepe Escobar: “As visões fazem tudo parecer tão cruel”


2/11/2012, Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu*


Mona Lisa must have had the highway blues
You can tell by the way she smiles
[Mona Lisa deve ter conhecido a tristeza das grandes estradas
Vê-se, pelo jeito que ela sorri]
Bob Dylan, Visions of Johanna  [2]


Pepe Escobar
NA ESTRADA, no Arizona e Colorado – 5 da tarde, sábado em Shungopavi (“casa da areia grama primavera”), fundada pelo Clã do Urso [orig. Bear Clan], o primeiro a chegar às três mesas Hopi no nordeste do Arizona. Toda a aldeia, mais as aldeias em volta, estão assistindo uma dança das cestas [orig. basket dance] antes do pôr do sol; espetáculo espantoso, onde a América Central encontra o Sudoeste Norte-Americano. Diz a geologia que aqui, sem problemas, poderia ser o Afeganistão.

É proibido fotografar. Então, me dedicava a imprimir na lembrança o quadro inteiro de uma tradicional casa Hopi de dois pisos como organismo vivo; uma velha senhora como anjo guardião, crianças escalando os degraus, uma família expandida, conversando. E foi um milagre: cheguei a essa cerimônia sagrada por acaso, dirigindo pelas mesas antes de a noite cair, aquelas vilazinhas penduradas no alto, contemplando as planícies sem fim.

Paisagem da região de Four Corners
A Nação Hopi sempre viveu na área de Four Corners [quatro cantos] do Platô do Colorado. Vivem sob umas das cosmologias mais sofisticadas do mundo. Segundo ela, emergiram do submundo através de um sipapu – uma abertura – no Grande Canyon. Foram lançados à luz desse – o Quarto – Mundo, graças à ajuda de um pequeno pássaro, shrike [gavião pequeno, de bico curvo], e fizeram um voto a Sootukwnangwu, o Supremo Criador, de viver com decência. O espírito guardião da terra contou aos Hopis que teriam de servir como guardiões da terra, depois de terem concluído suas quatro migrações, para o norte, sul, leste e oeste à procura do centro da terra.

Conta a lenda que os Hopis viajaram aos tempos aztecas no México, para a América do Sul, até o Círculo Ártico e atravessaram os EUA de costa a costa. No centro da cruz formada pelas quatro rotas que percorreram estão as mesas Hopi. Cada vez que volto aqui – já voltei algumas vezes – seguindo a estrada Arizona 264 Leste, sei que essa é terra sagrada, a mais sagrada que já vi.

Four Corners (Vista aérea da intersecção das divisas dos 
Estados de Utah, Colorado, Arizona e Novo México)
Outros clãs também migraram para as mesas Hopi, e contribuíram, com habilidade ou cerimônia diferente dedicada à prosperidade comum. O calendário cerimonial dos Hopi é ultra sofisticado. Um homem santo em cada aldeia determina a ocasião de cada cerimônia, conforme a posição do sol.

Dança Hopi  Kachina (desenho de 1921)
As Kachinas  [3] são seres espirituais, absolutamente importantes na cosmologia Hopi, encarregadas de fazer com que a chuva não falte. Elas visitam os Hopis e trazem presentes – daí as senhoras da aldeia vestidas como Kachinas, com trajes fabulosamente elaborados, distribuindo cestas à assistência (atualmente, também utensílios de plástico para o dia a dia). No final da dança, as Kachinas recebem amuletos de penas, para que as rezas pedindo chuva e os mais variados eventos auspiciosos sejam transportados em todas as direções.

E todo mundo vota com os Democratas

Todos os sítios arqueológicos da Reserva Hopi são protegidos por lei federal e, sobretudo, por leis tribais dos Hopi. É absolutamente proibido fotografar, filmar ou, mesmo, desenhar, o que ali se vê, as aldeias ou as cerimônias – o que prova que as mais impressionantes imagens dos EUA, a terra universal da imagem-monstro, continuam absolutamente misteriosas, invisíveis, impublicáveis e impublicadas.

Um dos habitantes da aldeia pediu-me, muito gentilmente, que parasse de tomar notas num iPhone. Álcool e drogas são proibidos – embora, infelizmente, sim, há tráfico de tudo, alguns traficantes são Hopis, traidores de seus próprios códigos nacionais. Cada aldeia Hopi é autônoma – estabelece suas próprias políticas, sancionadas a seguir pelo Conselho Tribal Hopi.

Four Corners fica na intersecção das divisas dos 
Estados de Utah, Colorado, Arizona e Novo México
Mitt Romney jamais seria encontrado morto [4] num lugar como a Nação Hopi. Para começar, os Hopi sobreviventes são só 15 mil, distribuídos em 12 aldeias. Como Rhonda, minha amiga Hopi em Tuba City, explicou, esse território é predominantemente Democrata, num estado profundamente Republicano.

Pelos padrões norte-americanos, são todos parte dos 47% de Mitt, alguns muito pobres, vivendo em casas feias, de blocos de concreto, embora alguns poucos jovens Hopi estudem na Universidade do Arizona. Tudo indica que a Nação Hopi votará predominantemente em Obama – sempre elogiado por ter feito “coisas boas para nosso povo”. Mesmo assim, o único presidente Democrata que algum dia visitou pessoalmente a Nação Hopi foi, claro, ele, o grande Bubba, em carne e osso. É, Bill Clinton lá esteve, durante o primeiro mandato.

Quer dizer: fui abençoado e pude assistir a uma dança dos cestos; ganhei uma Kachina – “O Homem Borboleta” – que velará pela retaguarda; e uma pulseira nova, “pata de urso”, para substituir a que eu tinha, e quebrou. Mais uma vez, apresentei meus solenes respeitos ao que resta do sonho Americano Nativo.

Mas não consegui descobrir um homem santo Hopi para me contar o que foi feito do Sonho Americano, na versão excepcionalista. Assim sendo, segui adiante para o território sagrado da Nação Navajo, acompanhando o indispensável Native Roads (Rio Nuevo Publishers, Tucson, 2nd edition), de Frank Kosik – diretamente para a Geologia Espetacular, maior que a vida, além da IMAX, do Vale Monumental.

A Reserva Hopi é cercada pela Reserva Navajo. Nem preciso dizer que não se entendem lá assim tão bem. Entendem-se pessimamente mal. E, isso, para não falar das histórias imundas de colonos Mórmons – a tribo de Mitt – quando tomaram as terras Navajos no século 19. Diferente de Jim Morrison – o qual, em viagem psicodélica, foi visitado por um homem santo Navajo e viu a luz – o que eu queria, mesmo, era conversar um pouco. Nada há, para elevar a alma, ouvir, ali, que o presidente dos Navajos, Ben Shelly, [5] está nas tratativas finais para renovar a concessão de uma Usina Navajo de Geração [orig. Navajo Generation Station (NGS)] movida a carvão, altamente poluidora, sem sequer consultar os próprios Navajos.

Como Marie Gladue recordou a todos, em carta publicada no Navajo-Hopi Observer, “a NGS é a maior emitente de gases do efeito estufa, do estado do Arizona”, emissões que têm levado a secas, incêndios, temperaturas altíssimas, para nem falar de crianças com asma e idosos com bronquite e risco cada dia mais alto de desenvolverem doenças cardíacas. Mas nada sugere qualquer possibilidade de a NGS passar a usar, em vez de carvão, energia solar.

Navajos em foto de 1905 (alguns ainda com vestimenta original)
Sem homem santo Navajo à vista, fui premiado com um satori  [6] estético que faria John Ford [7] corar de inveja. Aconteceu à vista de Albert e seu cavalo, no cenário do Vale Monumental; a filha dele vende jóias navajo exatamente no point de John Ford. Albert conta que não está fácil ganhar a vida, desde que a recessão tudo envolveu, em 2007/8. Mas ele ainda acredita na promessa de sua terra abençoada. Como no ginásio Grey Hills Academy – um dos melhores exemplos da luta da Reserva Navajo para alcançar autodeterminação na educação.

Entra em cena o caubói judeu

Marco da fronteira quádrupla
Era hora de tentar jogada arriscada, de último minuto, ou o jogo estaria perdido. Comecei pelos Quatro Cantos – onde Utah, Colorado, Arizona e Novo México encontram-se. Utah e Arizona votam Romney; Novo México vota Obama. Colorado é estado indeciso, mas as chances de Obama vencer ali já chegaram a 63% e continuam subindo, segundo as projeções de Nate Silver.

Nos Quatro Cantos, encontrei Wayne, que me presenteou com toda a cosmologia Navajo, inteira, pintada por ele mesmo, em arenito. Promissor, como presságio, de que conseguiria encontrar um curador curandeiro de verdade. Mas ainda tive de cruzar metade do Colorado, entre florestas majestosas de pinheiros, cafés imaculados da era do excepcionalismo norte-americano, embrião da estação de esqui em Vail, uma tempestade-monstro-furacão de spots de propaganda de ataque, sem parar, na televisão, das duas campanhas, de Obama e de Romney, até o Instituto Naropa de Estudos Budistas, ultraverde e ecoamigável, em Boulder; e bicicletistas e skatistas por toda parte.

E foi quando, finalmente, dei com ele – em Broomfield, perto de Boulder; a encarnação pós-tudo do que seja um curandeiro curador norte-americano. Era um caubói judeu/rabino que cantava casos com voz muito abaixo de grave. Claro, tinha de ser: concerto de Bob Dylan [8] inserido em tour sem fim; uma espécie de cerimônia sagrada, só para iniciados, para gente que sabe para onde olha, à procura de chaves para achar resposta.

Lá estava ele, coringa curandeiro curador, sempre de camisas e calças azuis, sempre pela estrada 61, a lembrar aos passantes que algo acontece aqui e não se sabe o que é. Obcecadamente dedicado a nada ser além de seixo que rola, a postos, torre de vigia e esperando chuva – ou a resposta que venha soprada no vento. [9]

Ao fim de minha peregrinação à procura de um homem santo, encontrei minha resposta quando Bob Dylan cantou versão inacreditável de Visions of Johanna  [10] – coloradenses autênticos, ao meu lado, também boquiabertos. Enquanto a consciência corre perigo de explodir e talvez exploda na busca de um evanescido sonho americano,

as gaitas de boca tocam acordes [notas, chaves] antiquados, e a chuva
e essas visões de Johanna são agora tudo que resta. [11]

Ô, sim, EUA excepcionais:

Não é bem a noite [no sudoeste], a nos pregar peças, quando você tenta manter a calma? Parece que ficaremos sentados aqui, desamparados, fazendo hora, por um bom tempo – embora todos insistindo, fazendo o máximo, mentindo que não. [12]

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Comentário do pessoal da Vila Vudu: Tradução quase impossível, dificílima. Fizemos o que deu. Todas as correções são bem-vindas. A luta continua!

Notas de tradução:

[1] Orig. [Mas essas visões de Johanna] make it all seem so cruel. É verso de Bob Dylan. Vide nota [2]

[2] Letra original e  tradução (ruim) em: Visions of Johanna .
Assista gravação com o autor (Bob Dylan) a seguir:

[3] Podem ser vistas em: Kachina Hopi

[4] Orig. wouldn't be caught dead. A tradução acima é literal e não está errada. Mas essa expressão, em inglês, está associada para sempre a uma fala de George Harrison, dos Beatles, em A Hard Day’s Night, o filme: “[as roupas dele são horríveis]. Eu nunca serei encontrado morto vestindo isso!” (com pequena variação em: A Hard Day's Night Script - Dialogue Transcript) Essa nota pareceu-nos necessária, porque, aqui, ninguém está falando em o cara ser encontrado morto-morto.

[5]  Veja a página da Nação Navajo, com fotos do presidente.

[6] Satori é termo do budismo japonês, para “iluminação”. Literalmente, significa “compreensão”.

[7] John Ford dirigiu vários filmes em que o mesmo cenário – Vale Monumental, Arizona, na fronteira com Utah – é, também, personagem. Por exemplo, Stagecoach [No Tempo das Diligências (título no Brasil) e A Cavalgada Heróica (título em Portugal)], de 1939, já clássico do western.


[9]Orig. “[para lembrar que]something's happening here and we don't know what it is [verso de Bob Dylan, em Ballad Of A Thin Man  (...) a rolling stone (Bob Dylan em Like a Rolling Stone ), all along the watchtower (...) [(Bob Dylan, All Along The Watchtowe  e expecting rain) – or the answer blowing the Wind (Bob Dylan)] .

[10] Vide Nota [2]

[11] Orig. the harmonicas play the skeleton keys [também “chaves antigas”, das que se veem em: Bulk Skeleton Keys Package , p. ex.] and the rain / and these visions of Johanna are now all that remain (a tradução acima visa, apenas, a ajudar a ler.

[12] Orig. Ain't it just like the [Southwest] night to play tricks when you're trying to be so quiet? It seems like we'll be sitting here stranded for quite a while - even though we all keep doing our best to deny it (a tradução acima visa, apenas, a ajudar a ler).

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