sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

As raízes do antiamericanismo global


11/12/2012, Murtaza Hussain, Al-Jazeera
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Murtaza Hussain
A incongruência pareceu verdadeira traição. Depois de entrar, dançando, diretamente no coração dos norte-americanos, e de ganhar acesso direto ao mais alto santuário do culto às celebridades, o rapeiro coreano Psy, autor de “Gangam Style” – que rapidamente se tornou o vídeo mais assistido [1] de toda a história do YouTube e fez do autor sensação da cultura pop da hora – foi identificado como militante político muito ativo, em declarada oposição aos principais pontos da visão de mundo norte-americana dominante, com ações em que se opôs fortemente aos mais básicos artigos da fé norte-americanista. [2].

O homem acolhido como performer nada ameaçador, estrangeiro meio ridículo, quase cômico, dançando como cavalinho de brinquedo para diversão dos norte-americanos, foi descoberto como o mesmo que, há poucos anos, criticara furiosamente as políticas norte-americanas; a função global daquelas políticas e o papel do EUA no mundo.

Numa performance em 2004, o rapper – hoje famoso por sua dança “do cavalinho invisível”, denunciou os EUA em canção intitulada “Hey American”:

"Kill those f*cking Yankees who have been torturing Iraqi captives
[Matem aqueles ianques fodidos que torturaram prisioneiros iraquianos]
Kill those f*cking Yankees who ordered them to torture
[Matem aqueles ianques fodidos que os mandaram para a tortura]
Kill their daughters, mothers, daughters-in-law and fathers
[Matem as filhas deles, as mães deles, as enteadas deles e os pais]
Kill them all slowly and painfully”
[Matem todos eles, lenta e dolorosamente].

Para o público norte-americano condicionado a um culto inquestionável dos militares – que se sintetiza na frase “Apóie os Soldados” [“Support the Troops”], os versos de Psy são nada menos que sacrilégio. E “Hey American” não foi a única ofensa.

Em performance anterior, Psy subira ao palco para protestar contra a presença de 37 mil soldados dos EUA na Coréia do Sul, e destruiu uma miniatura de tanque norte-americano, usando como porrete um suporte de microfone, para protestar contra o assassinato de duas meninas sul-coreanas [3], por soldados norte-americanos.

Assim se descobriu que o astro pop asiático, que os norte-americanos tão entusiasticamente (e tão rapidamente) consagraram – e que seria, como houve quem dissesse, o primeiro entertainer a franquear com sucesso a fossa cultural que separa os continentes – carregava com ele, além de um estilo culturalmente exclusivo de cantar e dançar, também toda uma visão de mundo que é ameaçadoramente estranha à maioria dos norte-americanos.

Se o aparentemente mais inócuo cantor pop, oriundo de um país tido e havido como parceiro benigno e confiável, esposa ideias e falas que qualquer norte-americano médio atribuiria aos mais ameaçadores terroristas da al-Qaeda, é preciso começar a perguntar sobre o antiamericanismo que já é global, e sobre do que esse antiamericanismo se alimenta.

Enquanto persistir o militarismo norte-americano sem qualquer
contenção, o fenômeno do antiamericanismo continuará a alastrar-se
 e a minar a capacidade dos EUA para encontrar os aliados de que
necessitam em área estrategicamente tão importante [EPA]
Um legado de violência

Embora a vastíssima maioria dos norte-americanos ignorem ou vivem como se ignorassem completamente a longa história da brutalidade dos norte-americanos [4] em locais como a Coréia, essa história não é, de modo algum nem ignorada nem apagada pelos cidadãos dos países que sofreram e continuam a sofrer atrocidades horrendas nas mãos de soldados norte-americanos.

Durante a Guerra da Coréia, acreditava-se que soldados norte-americanos teriam sido responsáveis por centenas de casos de massacres em massa de civis [5], dentre os quais o infame massacre de No Gun Ri,[6] quando membros do 7º Regimento de Cavalaria dos EUA massacraram centenas de civis coreanos numa passagem ferroviária, durante três dias.
Um filme documentário de 2009, sobre o massacre, registra as palavras de um sobrevivente coreano, que relembra como os soldados norte-americanos mataram indiscriminadamente homens, mulheres e crianças:

“As crianças gritavam de medo e os adultos suplicavam pela própria vida. E eles nunca paravam de atirar”.

Outro sobrevivente da Guerra da Coréia fala da tática sempre utilizada pelos norte-americanos, de atacar as vilas com bombas de napalm, [7] em campanha de terra arrasada que matou número incontável de civis:

“Quando o napalm atingiu nossa vila, a maioria ainda dormia (...). Os que sobreviveram aos incêndios, corriam (...). Tentávamos mostrar aos pilotos norte-americanos que éramos civis. Mas eles matavam sem nem olhar, qualquer um, mulheres, crianças”.

A completa indiferença pela vida dos coreanos durante a campanha global dos EUA contra o comunismo continua até nossos dias, sob a forma de estupro e assassinato, [8] dirigida contra civis coreanos por soldados norte-americanos alocados nas bases distribuídas pelo país.

Em incidente em 2011, caso típico de uma longa prática fartamente documentada dos soldados norte-americanos no país, um soldado de 21 anos, Kevin Flippin, invadiu o quarto de hotel onde estava hospedada uma mulher coreana e violentou-a e torturou-a por várias horas, [9] antes de roubar-lhe o equivalente a apenas 5 dólares e voltar à base.

Assassinato e violência sexual têm acontecido com alta frequência ao longo das décadas de presença militar dos EUA na Coréia, e refletem comportamento que se constata [10] também em incontáveis outros países, em todo o mundo, onde há ocupação militar e bases militares dos EUA.

Rejeição disseminada contra os EUA

Apesar de o virulento antiamericanismo que se vislumbra nas revelações sobre a história da militância política de Psy ter base em incidentes como esses, a Coréia absolutamente não é o país mais antiamericano do mundo.

Pesquisas realizadas na América Latina têm mostrado a presença, também ali, de claro antiamericanismo; [11] um legado do intervencionismo militar norte-americano no continente, bem vivamente manifesto sob a forma de tortura e assassinatos [12] além da subversão e derrubada de regimes e governantes democraticamente eleitos [13] ao longo de muitas da últimas décadas.

Mas, apesar dessas evidências, pesquisa realizada em 2012 pelo Instituto de Pesquisas Pew [14] [No Brasil, segundo essa pesquisa, 61% da população manifesta opinião favorável aos EUA (NTs)] mostrou que é no mundo árabe e no mundo muçulmano onde se encontram as impressões menos favoráveis aos EUA; essas visões negativas foram sensivelmente atenuadas, por curto período, imediatamente depois da primeira eleição de Barack Obama; mas, hoje, já estão novamente ativas, no sentido mais negativo possível, nos níveis que havia na era Bush, quando os índices de rejeição aos norte-americanos explodiram. [15]

Dentre todos os países pesquisados, os países nos quais se manifesta mais alta incidência de antiamericanismo são os de população majoritariamente muçulmana. Mesmo na Turquia e na Jordânia, cujos governos são aliados tradicionais dos EUA, as populações são predominantemente antiamericanas: na Jordânia, apenas 12% da população manifestou opinião favorável aos EUA.

Não por acaso, a Jordânia é, também, país onde vive grande população de refugiados da invasão dos EUA ao Iraque [16], vítimas civis de uma guerra que já não preocupa os cidadãos dos EUA, mas que ainda é causa de desespero e miséria em muitos países em todo o Oriente Médio.

Apesar da quantidade inacreditável de pesquisa que resultou em várias complexas teorias [17] para explicar o desprezo que os EUA inspiram a tantos, o princípio da “Navalha de Ocam” – princípio lógico que determina que a explicação mais simples é quase sempre a mais acertada – sugere que a causa da antipatia crescente é o militarismo norte-americano que deixou pegadas muito fundas na Coréia e que, hoje, devasta o mundo muçulmano.

No Paquistão, onde apenas 9% da população manifestou opinião favorável aos EUA, segundo pesquisa feita pela BBC em 2010, [18] houve vibrante simpatia pelos EUA, em tempos em que Jacqueline Kennedy era recebida por multidões em festa e guirlandas de flores pelas ruas, em visita oficial que fez ao país;[19]e onde a cultura pop norte-americana foi muito ativamente difundida.[20]

Mas tudo isso mudou nas décadas recentes. O que os paquistaneses veem hoje é o custo descomunal da guerra, em termos de vidas ceifadas no vizinho Afeganistão e milhões de refugiados [21] que o conflito faz jorrar sobre o Paquistão.

Os próprios paquistaneses já se veem, cada dia mais, como alvo direto da violência dos EUA; são mortos a tiros nas ruas, [22] por agentes da CIA; são assassinados por aviões-robôs, os drones, operados à distância [23] e são sequestrados e entregues para serem torturados em “buracos negros” clandestinos da CIA [24] espalhados pelo mundo.

Ao fazer guerra massiva contra o Afeganistão e ao ocupar o país, o que desestabilizou e gerou caos social no Paquistão, país cuja população tem profundos laços étnicos e religiosos com o Afeganistão, os EUA contribuíram para converter um relacionamento estável em confronto cada dia mais perigoso, que incendiou os mais ferozes sentimentos antiamericanos, inclusive, hoje, também entre os paquistaneses liberais e seculares. [25]

A degeneração da popularidade dos EUA no Paquistão, contudo, é só uma ilustração de tendência muito mais ampla, de percepção geral extremamente negativa contra os EUA, em vasta região do planeta, reforçada pelo militarismo rampante.

Arrogância e atrocidade

A população dos EUA, que ouve incansavelmente a propaganda interna que promove a versão segundo a qual o país teria papel benevolente no mundo, talvez se surpreenda com a informação de que mais da metade de todos os refugiados que há hoje no planeta fogem, em 2012-3, de guerras feitas pelos EUA.[26]

A guerra em escala rampante, guerra em ritmo industrial, que os EUA movem contra civis em países como o Iraque, o Afeganistão, o Paquistão, o Iêmen e a Somália gerou nesses países, como consequência imediata, uma onda de sentimentos negativos, ainda ignorados por grande parte dos norte-americanos.

Episódios como o estupro de uma menina iraquiana de 14 anos, seguido do assassinato de toda a família, por uma gangue de soldados norte-americanos [27] são atos emblemáticos do sadismo sempre presente nos contatos entre militares e policiais norte-americanos e os povos locais. Mas, num espécie de comédia bizarra de humor negro, os políticos eleitos nos EUA ainda falam sobre “a ingratidão[28] das populações locais, contra as quais as tropas dos EUA atiçam todos os cães da violência e do horror.

Parece haver aí, além de ignorância e do egoísmo mais cego, que se manifestam nas políticas principais dos governos dos EUA, também uma espécie de miopia. Ao mesmo tempo em que os EUA lançam guerra total, invadem e ocupam nações soberanas empurrados pelos mais falsos pretextos [29], assassinam centenas de milhares de civis [30] e geram milhões de refugiados,[31] ainda há, nos EUA, quem pergunte “Por que nos odeiam tanto?”.

Ao mesmo tempo em que militares norte-americanos – que a opinião pública nos EUA é adestrada para ver como heróis inquestionáveis e como orgulhosos símbolos do melhor que a sociedade norte-americana produz – descobrem em inventam novos modos de impor violência sempre crescente contra civis em países árabes e muçulmanos – incluídos aí os ilegais “assassinatos de alvos predefinidos[32] e, como se viu recentemente, também o assassinato de “crianças hostis” [33] no Afeganistão, a reputação dos EUA, como país, despenca em todas as pesquisas de opinião pública que se façam no Oriente Médio e por todo o mundo.

O Afeganistão é exemplo ilustrativo da arrogância essencialmente autodestrutiva das políticas norte-americanas na região. Em 2001, os EUA recusaram-se categoricamente a negociar com os Talibã [34] que haviam manifestado desejo de cooperar para que os EUA alcançassem todos os seus objetivos; ofereceram-se, inclusive, para entregar Osama bin Laden aos norte-americanos. Os EUA recusaram a oferta, sob o argumento puramente retórico segundo o qual os EUA recusar-se-iam a “negociar com o mal”.

Avance o filme para hoje, 11 anos adiante daquele momento. Hoje, depois de dezenas de milhares de mortos e trilhões de dólares desperdiçados, os EUA estão fazendo exatamente isso: estão negociando com os Talibã, exatamente como já poderiam ter feito há uma década [35] – não fossem as políticas de Estado flagrantemente irracionais, construídas por uma mistura de arrogância e sede de sangue.

Se se vê a autoproclamada potência global dominante agir como age, de modo chocantemente estúpido e destrutivo, e ainda surpreender-se por tantos manifestarem tão firme rejeição ao país e suas políticas, a conclusão é clara: os EUA cultivam uma consciência nacional delirante, que compromete gravemente qualquer projeto que o país ainda cultive de vir, algum dia, a conseguir operar com sucesso qualquer política exterior efetiva.

Relação cada dia mais envenenada

Mesmo dentro dos mundos árabe e muçulmano, como além deles, para os que admiram valores apresentados como se fossem norte-americanos, como o secularismo, o direito à livre manifestação de ideias e o direito ao livre empreendimento, a década que passou, de violência sem contenção ou limites, já comprometeu permanentemente a reputação de uma nação que, antes, gozou da mais alta estima entre as elites sociais. [36]

As políticas norte-americanas para o Oriente Médio já são vistas pelas massas e, também, cada vez mais, por porções consideráveis das elites locais, como manifestação de visão de mundo cruel, arrogante e fundamentalmente racista, [37] segundo a qual as populações-alvo de agressão e guerras são consideradas inferiores, gente cujo sofrimento não passa de externalidade desprezível, se se consideram os objetivos das políticas de implantação do poder.

O tipo de brutalidade que os norte-americanos impuseram à Coréia, há décadas, ainda se manifesta num veio de fúria subterrânea que, volta e meia, aflora nos discursos sociais de muitos coreanos. Se se considera essa evidência, vale a pena perguntar quanto tempo ainda falta, até que se disperse a percepção negativa a respeito dos EUA que se vê hoje no mundo muçulmano.

Enquanto perdurar em toda a Região o militarismo norte-americano sem contenção ou limites, a percepção negativa sobre os EUA só aumentará; e o sentimento de antiamericanismo continuará a crescer, minando a capacidade dos EUA para encontrar os aliados que tanto lhes faltam nessa parte tão estrategicamente importante do mundo.

Nada muda, ainda que todas as provas que saltam aos olhos de tantos em todo o mundo sejam sublimadas ou “apagadas” em nome de algum pragmatismo. Nem por isso as provas somem. Quando tiverem de escrever a própria história, os EUA terão de enfrentar o legado do desprezo global, da desconfiança, do ressentimento, frutos amargos do tempo em que o país tanto fez para se autopromover como única superpotência mundial. 

Façam o que fizerem, a história dos EUA não poupará a imagem fictícia que tantos americanos ainda cultivam deles mesmos e de seu país.


REFERÊNCIAS

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