domingo, 17 de novembro de 2013

Comentário semanal (1–8/11/1013): “Sobre os sunitas”

15/11/2013, Conflicts Forum’s - WeeklyComment
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Mesquita de Al-Ahzar no Egito, uma instituição sunita
Com um apelo contra decisão judicial que impôs pena de banimento à Fraternidade Muçulmana, com confisco de todos os bens da organização, derrubado pelo Tribunal na 4ª-feira passada -  e com o presidente Mursi, na mesma semana, comparecendo ante um tribunal no Cairo, que o acusa de crimes para os quais a lei egípcia prevê a pena de morte – encerra-se com violência um importante capítulo da história do movimento islâmico sunita.

Poder-se-ia argumentar que os tormentos pelos quais passa a Fraternidade Muçulmana sejam apenas pontos de um dos fios do elaborado tecido do Islã, e que instituições sunitas milenares, como a mesquita Al-Ahzar, continuam; mas as implicações da derrubada violenta da Fraternidade Muçulmana são muito mais profundas: tocam no nexo mais amplo que é parte da própria identidade sunita – o modo como muçulmanos, praticantes e “seculares” passarão a se verem, eles mesmos: o Islã será secularizado, para “adaptar-se” a tempos materialistas, ou esses eventos, mais provavelmente, levarão a resposta violenta ou, mesmo, levarão a recapturar, para o Islã, algo de seu legado histórico, agora sob forma contemporânea?

Não se trata apenas de um movimento sunita global influente, que vê implodir toda sua estratégia para fazer sua visão de sociedade islâmica “permear” legitimamente o processo político até o poder. Trata-se também da constelação de eventos que acompanham essa implosão, e que arrasta com ela a ambição desmedida, carregada de húbris, da Arábia Saudita, que aspira a liderar o mundo sunita (jogando a Casa de Saud numa amarga guerra de atrito contra outros grandes clusters sunitas sobre os quais tentou impor uma autodeclarada “autoridade” de líder do Islã sunita). Esse evento parece também soprar novos ventos sobre as brasas de velhas animosidades ainda fumegantes entre um islamismo “nacionalizado” (i.e. o Islã-“estado” burocraticamente controlado no Egito) e o movimento islâmico – como o atestam os insistentes e violentos protestos de estudantes no campus da universidade Al-Azhar.

Campus da Universidade Al-Ahzar, Cairo, Egito (parte central da foto)
Considerados os ódios mais amplos que hoje dilaceram a sociedade egípcia, o que acontecerá ao Islã populista – ainda a parte mais significativa do eleitorado, sobretudo entre os mais pobres? Por que o Islã populista não se desintegraria e degeneraria – pelo menos em parte – numa colcha de retalhos fundamentalista, violenta, em fúria, xenofóbica de movimentos jihadistas. Como se vê acontecer hoje na Síria, não é impossível. Pode acontecer.

Até agora, a região viu-se reconfigurada ao longo de uma linha divisória de um eixo sunita “moderado”versus um “arco xiita”. E a Fraternidade Muçulmana se autoconstruiu nessa moldura: era parte do Islã sunita “moderado”. Também do ponto de vista da Fraternidade Muçulmana, eles conquistaram a posição de Wali al Amr (Guardião, o Encarregado), quer dizer, foram investidos de autoridade legítima no Egito e, assim sendo, fazem jus à fidelidade dos muçulmanos egípcios. Mas, em vez de receberem fidelidade e respeito, foram ilegalmente derrubados do governo, por ação do próprio poder cuja única legitimidade advém do princípio do Wali al-Amr – a Casa de Saud. O paradoxo foi suficientemente severo para lançar não só a Fraternidade em estado de completo desarranjo e confusão, mas, também, grande parte do salafismo, do qual o wahhabismo é um dos ramos. Muitos salafistas no Egito e fora do Egito entendem que a Fraternidade Muçulmana é Wali al-Amr de pleno direito – e que, em termos islâmicos, foi traída, ao ser deposta.

Fachada do complexo da mesquita Rabaa Adawiya, Cairo após batalha campal entre o exército egípcio e militantes da Fraternidade Muçulmana em 15/8/2013
Em resumo, é possível que o “modelo” de islamismo da Fraternidade Muçulmana tenha implodido e esteja agora carente de uma re-concepção; mas o mesmo pode ter acontecido também à posição da Casa de Saud como “líder” do Islã sunita – uma espécie de “dano colateral”, consequência do ataque que os sauditas lideraram contra os Irmãos. As tensões geradas por a Casa de Saud ter incitado um governo secular e ocidentalizado (no Egito) a matar, prender e violentar islamistas fraturaram o Islã sunita muito mais profundamente e muito mais largamente do que fraturaram a Fraternidade. Muitos salafistas no Egito e fora de lá, não surpreendentemente, se posicionaram a favor da Fraternidade Muçulmana, ao verem o ataque comandado por Sisi e inspirado pelos sauditas, não como ataque só contra os Irmãos – mas como ataque contra o próprio Islã.

Mas, se a Arábia Saudita foi o detonador que implodiu o modelo da Fraternidade Muçulmana (e, por extensão, também seu próprio “modelo” salafista, fundado na mesma teoria política sobre a prática do “governante muçulmano pio”, ou Salaf), nem por isso a Casa de Saud pode ser responsabilizada, só ela, pelo atual desarranjo e pelo cisma dentro do Islã sunita. Essas sementes foram lançadas há muito tempo, embora, sim, a Casa de Saud tenha com certeza exacerbado a tendência na direção da exterioridade – a ânsia por poder e “mundanidade” material – dentro do Islã sunita.

Faisal Devji
Um acadêmico estudioso do Islã, o Dr. Faisal Devji, introduziu a ideia, aparentemente contraintuitiva, de que o Islã político, longe de ser a manifestação política assertiva que reivindica para si, padeceu, desde o início, isso sim, do defeito de jamais ter sido suficientemente político [itálicos no original] – quer dizer, de não ter sido verdadeiramente político, pelo menos o suficiente para satisfazer as expectativas que gerou.

Seyed Mawdudi (antes de 1907), por exemplo, teve com seu objetivo principal fazer voltar atrás o que viu como “invasões” da hegemonia intelectual ocidental sobre o que considerava reservas do Islã. Seu trabalho não visou a fundar qualquer nova “ideia” política. Seus trabalhos não continham qualquer teoria política, embora Mawdudi tocasse em ideias leninistas. Mas depois que os turcos aboliram o Califato e a Umma no projeto de secularização de Attaturk dos anos 1920s (que assim aboliu simbolicamente o poder sunita), e num momento em que o Islã estava desorganizado, ele começou a trabalhar a noção do Salaf como “projeto político, não apenas como fonte de poder religioso. Eram os tempos das “grandes” ideias: o nacionalismo, o estado-nação, o socialismo e o Baathismo. E o Islã precisava ser reformatado de modo que respondesse ao ethos do tempo e às aspirações dos jovens, que se afastavam do Islã para abraçar o socialismo.

Foi nesse ponto que o Islamismo tornou-se “populista”, na ânsia para recuperar os jovens, e começaram os atritos com al-Azhar. Só durante o período posterior (anos 60s e 70s) o salafismo receberia o “polimento” intelectual (ironicamente, ação da Fraternidade Muçulmana, quando vivia em exílio na Arábia Saudita) que lhe daria a respeitabilidade acadêmica no mundo islâmico que lhe faltara até então.

Em resumo, aquele novo “projeto” islamista focou-se em dar aos muçulmanos uma “identidade política” de forma muito externalizada - com uso dos trajes islâmicos, sinais públicos de religiosidade, etc. – uma identidade política estilizada a qual, ela própria, era originalmente, é claro, uma noção política ocidental. O Islã Político adotou também uma doutrina muito externalizada, com ênfase em alcançar poder político. A religiosidade, por exemplo, deveria brotar do ativismo social e político, mais do que transformação humana interior. Todas essas mudanças efetivamente distanciaram o Islã sunita dos seus discursos históricos e deram-lhe uma forma de utopismo “nesse mundo” – outra vez, noção ocidental amplamente secular – apesar de agora fundado numa comunidade supostamente ideal dos muçulmanos aderentes desde os primeiros tempos. O islã sunita cedeu na “interioridade” e abraçou uma busca utópica de replicar – de algum modo e no complexo mundo de hoje – uma sociedade idealizada (e, de certo modo, imaginária).

Essa visão utópica é que implodiu no Egito. Não bastou, como agora já se vê claramente, sugerir que, se os egípcios simplesmente seguissem o exemplo do Salaf, todos os seus muitos problemas desapareceriam – apagados no sentimento utópico emergente de uma nova ordem. É o mesmo que dizer, em resumo, que a Fraternidade Muçulmana não foi suficientemente política. Tinha fome de poder, mas não teorizara o político nem o tornar-se verdadeiramente político. A utopia implodiu.

Assim sendo, o que vem a seguir? O que já aconteceu é que a liderança da Fraternidade Muçulmana foi separada da rua – o movimento mergulhou na clandestinidade e, o que é mais sério, tudo leva a crer que sua estrutura popular básica, as células do qual o movimento é construído, grupos locais de sete membros, conhecidos como usras – estão sob pressão e começam a desintegrar-se.

Militantes da Fraternidade Muçulmana são atacados pelo exército com gás lacrimogêneo durante manifestação na Av. Kornish El Nile, Cairo, Egito em 6/10/2013
Com bons argumentos, depois de terem flertado com o poder político e do fim terrível que viveram, muitos jovens muçulmanos (da Fraternidade Muçulmana e salafistas) já estão dizendo aos seus líderes: “nós bem que avisamos; nunca seria permitido: a lição a aprender é que é preciso queimar o sistema, antes de conseguir realmente reformá-lo”.

Em termos resumidos, a análise que fazem é que a Fraternidade Muçulmana, longe de ter excluído demais os diferentes, foi excessivamente conciliadora, acomodou-se demais ao “estado profundo” e aos generais. Os líderes supuseram, ingenuamente, que os remanescentes do estado profundo pudessem ser vencidos e cooptados. A lição, pois, para muitos jovens muçulmanos, é que o poder tem de ser “tomado” – e depois mantido a ferro e fogo. Em poucas palavras: cabe esperar a emergência de movimentos isolados, mais violentos, comprometidos com as políticas jihadistas para destruir o estado-nação, com vistas a estabelecer emirados “com os pés no chão”.

Recep Erdogan
Alguns Irmãos Muçulmanos, provavelmente a tendência recente dos “Irmãos-empresários”, podem simplesmente se passar para o secularismo em plena floração, mas terão fraca influência. Como o “islamismo-secular” de Erdogan e do Partido AKP na Turquia, que se baseou na crença segundo a qual, ao esposar a economia liberal de mercado, um governo islamista conseguiria se autovacinar contra a intervenção ocidental para arrancá-lo do poder; e que também já perdeu a posição de destaque que teve no mundo árabe.

É interessante que alguns pensadores islamistas tenham recentemente apontado para conclusão muito diferente, a ser extraída da experiência egípcia: chamam a atenção precisamente para a contradição inerente entre um Islã sunita muito declaradamente externalizado, que perdeu a vida interior e talvez nunca mais consiga recuperá-la (o que o Imã Khomeini conseguiu fazer com sucesso, para o Islã xiita). Clamam por um reequilibramento e sugerem que, no longo prazo, o Islã sunita terá de redescobrir a própria interioridade – e que essa deve ser compreendida como a principal lição a extrair do Egito.

O maior ponto aqui é o atual desarranjo, as fraturas dentro do Islã sunita, com linhas de separação que já geram seitas e sectarismos, e que separam sunitas e xiitas: os islamistas “seculares” versus islamistas; muçulmanos jihadistas versus muçulmanos não jihadistas; Islã “nacionalizado”versus Islã populista; elites urbanas contra populações rurais. A antiga fronteira sectária que aparta a Sunnah e a Xia reproduz o desarranjo político e intelectual mais amplo no qual a região tombou: todos os “modelos” políticos ditos sunitas para a região (turco, do Golfo, egípcio, etc.) fracassaram politicamente e economicamente, quando submetidos ao teste crucial do levante árabe).

E assim também, no plano político estratégico, a implosão da doutrina Carter e o fracasso da vontade ocidental, estão fazendo rachar o “eixo” dos estados sunitas moderados – o qual foi configurado em torno do, hoje também decadente, poder unipolar.

Chas W. Freeman 

O mundo simples das rivalidades coloniais e entre as superpotências já desapareceu há muito tempo. A noção de que é “conosco ou contra nós” perdeu toda a ressonância no moderno Oriente Médio. Nenhum governo na região está disposto agora a entregar o próprio futuro a estrangeiros, menos ainda a uma única potência estrangeira. Portanto, o papel das grandes potências externas na região vai-se tornando variável, complexo, dinâmico e assimétrico, muito mais que amplo, exclusivo, estático ou uniforme.

E é precisamente aí que a Arábia Saudita sente-se tão vulnerável: antes tão confortável no papel nada exigente de engrenagem do “eixo sunita” configurado em oposição polar ao “arco xiita”, a Arábia Saudita descobre-se hoje à deriva num novo mundo variável, complexo, dinâmico e assimétrico.

Alguns sugerem que o neonacionalismo preencherá esse vácuo angustiante. Talvez. Mas se contam com o Egito como caso exemplar de algum renascimento nacionalista, é pouco e não convence. Sobre quais princípios se basearia esse novo nacionalismo árabe? O socialismo original no qual se baseou antes já não está disponível. No Oriente Médio, o neoliberalismo não fez sucesso. Que visão daria sustentação a algum novo nacionalismo? Ou não passará de culto à personalidade, travestido como nacionalismo?

No Egito, cujos eventos serão cruciais na modelagem do futuro da região, o desenvolvimento que se vê cada dia mais claramente é a eclosão de uma guerra de classes, ao estilo Pinochet, muito mais que algum novo projeto nacional.

A tolerância sumiu, em retirada. A alta burguesia e as classes endinheiradas (muito assertivamente seculares) acorrem ao palácio do seu ídolo ditador, que adoram com tanto fervor quanto desprezam e demonizam as classes mais pobres: aqueles “comunistas” subversivos (cf. América Latina) ou aqueles “terroristas” (cf. a Fraternidade Muçulmana no Egito).

As orações e sermões das 6ª-feiras, a indicação dos imãs das mesquitas e a religião são controlados pelo aparelho do Estado. E, também ao estilo Pinochet, já há rumores sobre “desaparecidos” entre os egípcios não privilegiados e já demonizados. E também já circulam notícias de rixas nos baixos escalões do Exército e ameaças de mais golpes, depois do golpe. Quem sabe?



[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.

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