quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Pepe Escobar: “Maquiavel revivido em Florença”

14/1/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times (de Florença) – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Maquiavel- Niccolò di Bernardo dei Machiavelli (3/5/1469 – 21/6/1527)
2014 acaba de raiar, e estou, numa tarde fria e chuvosa, na Piazza della Signoria em Florença, olhando para a placa redonda, no piso – ignorada pelas legiões de turistas chineses – que assinala o local onde foi enforcado e queimado o monge Savonarola, dia 23/5/1498, condenado por conspirar contra a República Florentina.

Mas estou pensando – e como não pensaria? – em Maquiavel. Naquele dia fatídico, Maquiavel tinha apenas 29 anos. Estaria em pé, a alguns passos de onde estou. O que estaria pensando?

Girolamo Savonarola
Maquiavel viu como Savonarola, popular pregador dominicano, fora saudado como salvador da República: re-escrevera a Constituição, para dar poder à classe média. Querem saber? Não haveria então movimento (a favor do povo) mais arriscado e perigoso que aquele. Aliou Florença à França. Mas não teve como resistir, quando o papa Alexandre VI, pró-Espanha, impôs terríveis sanções econômicas que feriram fundo a classe dos mercadores florentinos (antecipação, séculos antes, das sanções dos EUA contra os bazaaris iranianos).

Savonarola também regeu a fogueira das vaidades original, cuja pirâmide flamejante incluía perucas, potes de rouge, perfumes, livros com poemas de Ovídio, Bocage e Petrarca, bustos e pinturas de temas “profanos” (até – horror dos horrores – alguns de Botticelli), cítaras, violas, flautas, esculturas de mulheres nuas, figuras de deuses gregos e, cúmulo dos cúmulos, uma efígie de Satã.

No final, os florentinos cansaram-se das lições de puritanismo linha dura de Savonarola – e uma sentença sombria da Inquisição papal selou o negócio. Quase vejo Maquiavel, o famoso sorriso enviesado – enquanto a fogueira ardia, exatamente um ano antes, no mesmo local onde Savonarola arderia depois em chamas. O veredito: não há lugar para realpolitik, numa “democracia” comandada por Deus. Deus, por falar dele, nem mudava coisa alguma. Só a natureza humana é capaz de decidir de que modo sopram os ventos; na direção da liberdade ou na direção da servidão.

Piazza della Signoria no século XVII - pintura de Giuseppe Zocchi
Eis, pois, o que aconteceu naquele dia na Piazza della Signoria em 1498 – no mesmo ano, morreu Lourenço, O Magnífico, e Cristóvão Colombo cruzou o Atlântico em sua terceira viagem para “descobrir o Novo Mundo: nada menos que o nascimento da teoria política ocidental, na cabeça do jovem Nicolau.

Estude a humanidade, meu jovem

Jacob Burckhardt
Florença é o primeiro estado moderno em todo o mundo, como Jacob Burckhardt diz bem claramente em seu magistral A Cultura do Renascimento na Itália, [1] deslumbrado ante “o fulgurante espírito florentino, ao mesmo tempo finamente crítico e artisticamente criativo”.

Os florentinos demoraram muito tempo para tecer a orgulhosa, patriótica tradição de república que se autogovernava; um quadro muito aristotélico, segundo o qual “o fim do estado não é a mera vida, mas uma boa qualidade de vida”. Muito cooperativa, com todos envolvidos, completamente diferente da República de Platão, cujas regras eram impostas do alto.

No alvorecer do século 15, os florentinos leitores de Aristóteles que muito desejavam celebrar a própria liberdade civil e política estavam ocupados na tarefa de esculpir – contando com as fabulosas obras de realismo pictórico e a paixão pela arquitetura clássica – nada menos que o que viria a ser conhecido como “a Renascença”.

Por que Florença inventou a Renascença? A resposta de Vasari serve, como outras serviriam: “O ar de Florença tornava naturalmente livres as mentes, sem se satisfazerem com mediocridades”. Ajudou também, que a educação fosse focada nos studia humanitatis – o “estudo da humanidade” (já praticamente esquecido no início do século XXI), com estudos de história (para compreender a grandeza da Grécia e da Roma antigas); retórica; literatura grega e romana (para aprimorar a eloquência); e filosofia moral que, no frigir dos ovos, era a Ética de Aristóteles.

Lorenzo di Medici
Maquiavel, nasceu em 1469, no mesmo ano em que subiu ao poder, depois da morte de seu pai Piero, o jovem Lorenzo de Médici (Lourenço, O Magnífico); foi protegido do avô de Lorenzo, Cosme [Cosimo] de Médici, O Velho; e viveu a maior parte da vida numa Florença dos Médici. Entendeu, portanto, a natureza (viciada) do jogo; como diz o brilhante historiador Francesco Guicciardini, Lorenzo foi “tirano benevolente numa república constitucional”.

A família de Maquiavel não era rica – mas integralmente dedicada ao ideal do humanismo civil. Diferente de Lorenzo, Nicolau pode não ter recebido a mais fina educação humanista disponível, mas estudou latim e leu os filósofos e especialmente os historiadores antigos – Tucídides, Plutarco, Tácito e Lívio, cujos trabalhos encontravam-se nas livrarias de Florença. Nos antigos heróis gregos e romanos, ele viu exemplos de grande virtude, coragem e sabedoria; que lastimável contraste com a corrupção e a estupidez de seus contemporâneos (pode-se dizer o mesmo, meio milênio depois).

Mas, se Maquiavel era aristotélico, Lorenzo era, em certo sentido, platônico. Mas quem melhor explica isso é o filósofo Marsilio Ficino, protegido de Cosimo, coordenador da Academia Platônica; Lorenzo não acreditava em Platão: ele usou Platão. E, além do mais, entendia de espetáculo – por exemplo, instalou o espetacularmente ambissexual David, de Donatello, [2] em seu pedestal, no cortile do Palácio Médici, e promovia avidamente em seu círculo de amigos o filósofo “da moda”, Pico della Mirandola, conhecido como “o homem que sabia tudo” ou - pelo menos - todo o conhecimento humano disponível na Renascença desde a queda de Constantinopla em 1453.

E então, apenas um mês depois da execução de Savonarola na fogueira, o homem de olhos negros, redondos, cabeça pequena e nariz aquilino, descrito por seu biógrafo, Pasquale Villari, como “observador muito fino, de mente atilada”, conseguiu um emprego. E por 14 anos foi leal servidor da república florentina restaurada, sempre a cavalo, em missões sensíveis, negociando, dentre outros, com o Papa Júlio II, com o rei da França, Luiz XII, o imperador Maximiliano I, do Sacro Império Romano, e o imprevisível, inacreditável, maior que a vida, César Bórgia, segundo filho ilegítimo do homem que viria a ser o papa Alexandre VI. Maquiavel foi encarregado da política externa de Florença; definitivamente, nunca foi o que hoje conhecemos como “especialista” de think-tank e poltrona, de Washington.

Cesar Borgia
Enquanto Maquiavel andava às voltas com César Bórgia, tornou-se amigo do engenheiro-militar-chefe de Bórgia, ninguém menos que Leonardo da Vinci. Faz falta um Dante, para imaginar o diálogo entre eles: um, que ia criando a nova ciência da política; o outro a mais refinada mente científica que a Renascença conheceu; na bifurcação do espírito humanista, da arte, poesia e filosofia, para a realidade – política e ciência.

“Sátira” ou “livro vivo”?

Sentado na minha enoteca favorita em frente ao Palácio Pitti para reler O Príncipe, [3] mexi também com outras fontes; houve um dilúvio de livros sobre Maquiavel nos 500 anos de O Príncipe, concluído em apenas quatro meses, no final de 1513. O melhor deles é O Sorriso de Nicolau, de Maurizio Viroli, historiador de Princeton. [4] Viroli estabeleceu, de vez, que Maquiavel nunca foi fantoche dos Médici.

Antes de tornar-se secretário da Segunda Chancelaria, em junho de 1498, Maquiavel já vivia, e ele próprio admite, bem próximo de Lourenço, O Magnífico. Pouco depois da volta dos Médicis ao poder em Florença, depois de um período de exílio (em Veneza e Pádua), Maquiavel passou pela tortura do strappado – tortura à florentina, em que as mãos são amarradas às costas e o corpo é puxado e erguido e depois jogado, para estatelar-se no chão, nunca menos que seis vezes (será que a CIA já ouviu falar disso?). Nem por isso virou rato: então, deixaram-no, para morrer; depois de 22 dias foi libertado da cela na torre de Bargello, no início de 1513, por intervenção de dois apoiadores dos Médici.

Clemente VII
Giulio di Giuliano dei Médici
No final da vida, Maquiavel ainda prestou vários serviços ao papa Clemente VII, ninguém menos que Giulio di Giuliano dei Médici. Mas o resumo disso tudo é que Maquiavel nunca foi medicista, seguidor dos Médici: queria, mais que qualquer outra coisa, que os Médici seguissem seus conselhos.

Então, saiu da cadeia, pobre mas não quebrado; retirou-se para sua pequena granja e pôs-se a escrever. O Príncipe resultou livro de história – não de teoria política. Rousseau declarou que seria “uma sátira”. Gramsci o apresenta como “um livro vivo” – uma celebração de um Príncipe utópico “mediante tantos elementos apaixonados, míticos, que ganha vida na conclusão, na invocação de um príncipe realmente existente”. [5] Maquiavel de fato desenhou o mito do fundador e do redentor de uma república livre – imaginando que a redenção do estado seria sua própria redenção, depois de ter sido demitido do posto de secretário, num comunicado lacônico e de, adiante, ter sido acusado de estar conspirando.

Foi uma bênção reler O Príncipe e os Discursos [6] os quais, à época, converteram-se em guia intelectual e político de todos que acalentavam o ideal da liberdade republicana na Europa e nas Américas. Os Discursos é a fusão, feita por Maquiavel, de Políbio e Aristóteles. Os romanos haviam descoberto que qualquer grande império estará sempre condenado, se não mantiver equilíbrio aristotélico entre monarquia, aristocracia e democracia. Maquiavel deu um passo adiante: todas as repúblicas existentes estão, de fato, condenadas. Numa república livre, como na Grécia e na Roma antigas, ou em Florença antes dos Médici, excesso de prosperidade, de sucesso, de ganância – e o inchaço – distorce o impulso do homem para o autoenriquecimento (ou o dissolve em complacência), muito mais do que o mantém a serviço do estado.

A podridão cresce de dentro para fora – não de algum poder externo. Pense-se na antiga União Soviética. Pense-se no atual declínio do Império dos EUA. Mas, como sempre, também aí há os excepcionalistas medíocres que não captam o grande quadro: Leo Strauss, da University of Chicago, ensinou, nos anos 1950s, que Maquiavel teria sido “professor do mal”.

Com a podridão crescendo de dentro para fora, é aí que entra o Príncipe. É como O Último Homem [orig. Last Man Standing [7] ] – muito distante da figura idealizada do rei-filósofo ou de um professor platônico. É o governante que arranca uma sociedade corrupta de seus descaminhos autodestrutivos e a empurra de volta à vida política de bases mais firmes – e à preeminência. (Maquiavel pensava especificamente em alguém que salvasse a Itália dos invasores estrangeiros e de sua própria casta de governantes cegos, surdos e imbecis).

Vladimir Putin
E se o Príncipe tiver de recorrer à violência para defender a república, a violência não poderá ser jamais gratuita, mas sempre subordinada a uma bem construída e argumentada ragion di stato [razão de Estado] (o ataque e a ocupação do Iraque pelos EUA, em 2003, obviamente não satisfaz esse requisito). Mas o Príncipe não é um messias político; é, mais, um misto de raposa (“para perceber as armadilhas”) e leão (“para assustar e espantar os lobos”). A mais adequada versão contemporânea seria Vladimir Putin.

Naquele fatídico dia de maio de 1498, Maquiavel viu, na execução de Savonarola, como o fundamentalismo religioso é incompatível com uma sociedade comercial e politicamente viável (os príncipes da Casa de Saud nunca leram O Príncipe). E nos mostrou o muro de desconfiança que separa a ética e a ciência de governar – traçou como um mapa resumido do caminho para o futuro da hegemonia global da civilização ocidental.

O mais curioso é que a dinastia Médici tanto tenha rejeitado O Príncipe à época; afinal, foi a culminância em matéria de manual de o que fazer para converter-se em O Poderoso Chefão (político) na pós-Renascença e dali em diante. E penso... O que os sábios cortesãos da dinastia Ming teriam feito de O Príncipe? Provavelmente, imperialmente, ignorá-lo.

Pois foi assim que celebrei o meio milênio de aniversário de O Príncipe; partilhando taças de Brunello, como se estivéssemos numa osteria florentina no início do século 16, com o espírito de um muito importante funcionário público sênior da República Florentina, que saiu demitido do seu gabinete, exatamente como ali entrara: pobre, incorruptível, com a dignidade intacta. Só posso admirar o sorriso enviesado no canto da boca, que mal disfarça a dor – mas, mais uma vez... Ele sabia que nada somos, que só temos papel insignificante nessa humana, demasiado humana, comédia.




Notas dos tradutores

[1] BURCKHARDT, Jacob [1860], A Cultura do Renascimento na Itália. Trad. Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 504 pp. ISBN 9788535913613.

[2] Pode-se ver algumas imagens.

[3] MAQUIAVEL, N. - O Príncipe. Col. Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril, 1973 [há outras edições].

[4] VIROLI, Maurizio, O Sorriso de Nicolau. Biografia de Maquiavel. São Paulo: Ed. Estação Liberdade, 2013. Tradução de Valéria Pereira da Silva, 312 pp.

[5] GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978 [há outras edições].
O caráter fundamental de O Príncipe é o de não ser um tratado sistemático, mas um livro “vivo”, no qual a ideologia política e a ciência política fundem-se na forma dramática do “mito”.
Assim começam as Breves notas sobre a política de Maquiavel, que Antonio Gramsci escreve no cárcere entre 1932 e 1934 e que constituem o essencial das suas reflexões sobre Maquiavel.” (Em Gramsci, leitor de Maquiavel, Juan Carlos Portantiero - Julho 2009, Tradução: Josimar Teixeira, in Gramsci e o Brasil).

[6] MAQUIAVEL, Nicolau, Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, São Paulo: Ed. Martins Fontes, 514 pp., 2007, ISBN 10: 853362316X e ISBN 13: 9788533623163.

[7] Bon Jovi tem uma gravação com esse título (Last Man Standing). Pode-se encontrar uma tradução (ruim), mas que ajuda a entender em: Bom Jovi – tradução.
Há também um filme e um seriado norte-americanos com o mesmo título. Vídeo de Last Man Standing (de 2003- gravado ao vivo) a seguir:

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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
- Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.

Um comentário:

  1. Comentário enviado por e-mail e postado por Castor

    prezado Castor, obrigado pelo envio deste.
    agora estou sem tempo, mas qdo puder dispor do necessário, vou enviar para vc algumas considerações sobre Maquiavel q, na verdade, foi um grande puxa-saco dos Médicis, para os quais -com o intuito de descolar uma sinecurazinha no final de uma vida (frustrada)- dedicava e rededicava sucessivas edições deO Príncipe,

    É lamentável que a visão (crítica) de Maquiavel ainda possa servir de guia para os q detém as rédeas do poder.
    Ser realista, por si só, não qualifica ninguém a ser capaz de gerar a consciência necessária para mudar-se o curso suicida q a humanidade tem escolhido até agora para trilhar sua caminhada, a qual a Renascença contribui (a despeito dos avanços culturais) para acelerar.
    Não creio q possam ter existido períodos históricos (com exceção dos de hoje, talvez) tão sujos e descarados como o da época em q Maquiavel foi ( sic "infeliz") partícipe.

    Bem, por ora é isso.
    Depois, qdo puder, escrevo mais a respeito.
    abração
    homero

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