sábado, 26 de abril de 2014

Conflicts Fórum: Comentário semanal de 11-18/4/2014

26/4/2014, [*] Conflicts Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Yezid Sayigh
É “perspectiva melancólica, com certeza”, escreve Yezid Sayigh, do Carnegie Middle East Centre. “Mas o momento em que Assad poderia ter sido derrotado por uma oposição inepta e por um movimento rebelde dividido, já passou”. O artigo de Sayigh é peça para ler com atenção. Embora reproduza a narrativa parcial da oposição, o que se vê claramente no tom melancólico, Sayigh mesmo assim é um dos mais conscientes analistas estratégicos da questão síria. Está na linha de frente do pensamento ocidental dominante sobre a Síria. Para muitos, hoje, o que mais surpreende na atual posição dele é a declaração, clara, de que “na verdade, todo o contexto de Genebra está morto”.

De fato, a iconoclastia de Sayigh vai além: ele também demole o mantra dominante segundo o qual, a Síria, sem Genebra, permaneceria condenada a ser inevitável “refém de um impasse militar infindável”. “Verdade é que, com o conflito entrando já no quarto ano, o impasse absolutamente já não parece infindável” – diz ele, refutando a fantasia do “impasse”. Observa que evidentemente os EUA não planejam aumentar substantivamente sua oposição militar; e que a Arábia Saudita está sendo contida, ao mesmo tempo, pela pouca disposição da Jordânia para facilitar a escalada militar através de seu território e, também, por Obama insistir em que o suprimento de armas seja limitado. “Quase três anos depois que o exército sírio interveio para conter o levante popular no país” – Sayigh escreve em outro artigo  – “o treinamento militar superior, a organização e o poder de fogo [do exército sírio] começaram a traduzir-se em vantagem decisiva. O regime avançou posições no norte e está em boa posição para frustrar o avanço dos rebeldes a partir do sul”.

John Brennan
Sayigh continua: “como John Brennan, diretor da CIA, disse em fala pública em março de 2014, “a Síria tem exército de verdade”, que é “uma grande força militar convencional, com tremendo poder de fogo”. “Beneficia-se significativamente, também, de aconselhamento de iranianos e russos, com novo treinamento para guerra em ambiente urbano, e da contribuição de força de combate não síria, sobretudo do Hezbollah libanês, de milícias xiitas iraquianas, da Guarda Revolucionária do Irã e de outros voluntários. E está fazendo mais do que manter posições”. E acrescenta: “Se a tendência atual se mantiver – e nada sugere que não se mantenha – nesse caso, o regime sírio [de Assad] estará em posição dominante, com efetivo controle sobre massa crítica do país, até o final de 2015, se não antes”.

A formulação de Brennan, não surpreendentemente, é seca e técnica. Mas, em essência, ambos, Sayigh e Brennan, estão dizendo que a Síria é o ponto crucial onde medem forças duas irreconciliáveis visões de futuro – não só do futuro da Síria, mas do futuro de todo o Oriente Médio.

De um lado, o mundo estreito, dogmático, intolerante dos jihadists e seus patrões; de outro lado, uma visão pluralista, mais ampla, não sectária, mais tolerante [de Assad, Khamenei, Nasrallah], para o Oriente Médio. O que Sayigh e Brennan, cada um à sua maneira, estão sinalizando, é que, nessa disputa de forças, essa segunda visão [de Assad, Kamenei, Nasrallah] está prevalecendo. Isso é imensamente significativo para a região como um todo; mas só depois de que se cristalize o resultado desse teste de força – não antes –, a política poderá voltar à cena.

Bashar al-Assad
A conclusão de Sayigh é que – por mais que os chamados “Amigos da Síria”, por hora, ainda clamem por solução internacional – também os agentes ocidentais já estão vendo que o “processo de Genebra” está esvaziado. O presidente Assad permanecerá no governo para comandar qualquer transição; e o mais melancólico é que talvez ainda se passem anos, antes de que possa emergir qualquer nova oposição legítima. Para Sayigh, o mais provável é que nenhuma nova oposição “se materialize, até que a oposição que há hoje e a rebelião armada tenham perdido completamente a batalha” (itálicos de CF).

Mas a expectativa de que se venha a criar um “espaço” político vazio, como resultado inevitável do fracasso do “processo” de Genebra, é, parece, excessivamente “polarizada”. A própria cristalização dessa disputa épica de forças gerará uma nova política. De fato, já começou a gerar, como comentamos adiante.

A “realidade” de Sayigh é uma, mas em vasta medida, visão externa – da diáspora no exílio & da maioria dos especialistas de think-tanks – e pode ser resumida como “nada de Genebra + nada de papel para a oposição no exílio = nada de solução”. Mas há outra “realidade” (à qual Sayigh não se refere, e que ele rotula pejorativamente como pacificação coerciva.

Essa outra história é história interna síria – e, essa, nada tem de melancólica.

O que hoje gera amplo interesse dentro da Síria é uma dinâmica de reconciliação –inclusive entre alguns elementos armados. Muitos sírios (incluídos muitos que não aderem à oposição externa, e, também, muitos dos que aderem a ela) deixaram de crer no “processo” de Genebra, depois de ouvir os discursos em Genebra-2. Não poucos sírios concluíram, do que ouviram lá e daqueles procedimentos, que o Ocidente não tem qualquer interesse numa solução política para o país; que o Ocidente só faz insistir que Assad “tem de sair”, e que todos os poderes executivos foram delegados à oposição de exilados da Coalizão Nacional Síria, inventada e cevada no Ocidente, e que tem ralo, ou nenhum, apoio dentro da Síria, em nenhum dos campos.

Essa outra realidade recebe pouca atenção da imprensa-empresa ocidental e, particularmente, dos think-tanks ocidentais, precisamente porque não considera nem o “processo” de Genebra, nem a Coalizão Nacional Síria. É realidade absolutamente contrária ao consenso que o Ocidente fixou, de alívio orquestrado internacionalmente para o conflito. Mas se Sayigh acerta ao dizer que alguns diplomatas ocidentais já viram que o “processo” de Genebra está morto, faltou dizer que devem também começar a ver que militarmente, politicamente e socialmente, a Síria caminha cada vez mais na direção de coisa diferente – uma nova dinâmica interna que, talvez, venha a exigir atenção mais séria no futuro.

O processo de reconciliação não foi lançado como uma política; aconteceu espontaneamente, e foi essencialmente um processo de baixo para cima que emergiu à medida que os sírios comuns descobriram uma via para “ação-agenciamento humano” – essencialmente em contexto local. Em resumo, surgiu quando as pessoas passaram por uma mudança de consciência: passaram a ver-se de outro modo, começaram a agir em defesa própria, em nome de si mesmos. Em vários sentidos, os comitês de reconciliação que agora existem e surgem em número sempre crescente de vilas e cidades, assemelham-se aos comitês populares que brotaram durante as Intifadas palestinas (e depois foram reprimidos pelos movimentos políticos palestinos).

Combatente do ESL passa por oficial do Exército sírio (17/2/2014)
Outro componente – talvez o mais evidente – foi o aspecto militar desse processo de reconciliação: cessar-fogos foram diretamente negociados entre grupos da oposição armada e o Exército Sírio; ou populações locais expulsaram os grupos insurgentes de suas vilas, bairros ou cidades; ou, simplesmente, os próprios moradores organizaram milícias para defender as próprias vilas – e pediram armas ao governo sírio.

O governo sírio respondeu a essas iniciativas e permitiu que ex-insurgentes conservassem suas armas (leves) – e preservassem o próprio status e a autoestima como combatentes. Ex-dissidentes, de fato, estão sendo absorvidos nos grupos locais, ajudando a defendê-los e participando do processo local de tomada de decisões. Nada disso aconteceu sem aguda controvérsia. Muita gente que sofreu ou teve parentes mortos, ainda guarda muito ressentimento e insiste em que os criminosos têm de ser processados, não recuperados. Mas a posição do governo é que a reconciliação tem de prosseguir – apesar da muita dor que cause a alguns.

O outro aspecto do que está ocorrendo é, precisamente, a redescoberta da ação-agenciamento humano. E é esse aspecto que tem imenso potencial político. Já se formaram comitês populares em muitas cidades e vilas. O Ministério da Reconciliação [1] supre esses comitês locais com fundos, mas eles também recebem doações de voluntários e colaboradores privados.

Embora mantidos com ajuda do Ministério da Reconciliação, esses comitês, que incluem funcionários locais, profissionais da educação, elementos das forças de segurança, sindicalistas, mulheres, ativistas e voluntários, tomam suas próprias decisões. Tentam encontrar professores voluntários para substituir professores ausentes nas escolas; organizam mutirões para reconstruir moradias; organizam abrigo e alimentação para famílias desabrigadas; dão apoio a mulheres atacadas ou violentadas; e reúnem comerciantes e empresários locais para repor em funcionamento pequenas fábricas em diferentes áreas. Como disse um analista, as pessoas já não esperam que as decisões venham de Damasco: fazem as coisas ali mesmo. E aí está o importante: sírios comuns estão redescobrindo as possibilidades da ação-agenciamento humano, mas de modo muito diferente – e em oposição – ao que fizeram os grupos armados radicais.

Combatentes do ESL caminham por bairro pacificado em Aleppo (17/2/2014)
O que temos aqui? Em certo sentido é mudança quase impalpável; é difícil de definir empiricamente, precisamente porque é iniciativa local; é condicionada por situações locais, e é iniciativa atomizada. Mas é o que se vê, muito frequentemente, em sociedades que conheceram conflitos e crises (a África do Sul, por exemplo): a própria sociedade reemerge psicologicamente transformada. A experiência do trauma existencial – individual ou coletivo – pode levar à ruptura psíquica, ou, alternativamente, a um fortalecimento, mesmo, até, a um endurecimento, e a uma atitude psíquica reenergizada.  

No caso da Síria, quem visite Damasco pode sentir que, apesar de os combates continuarem, provocados pelos insurgentes, com morteiros lançados sem alvo, diariamente, nos arrabaldes da cidade, as pessoas comuns mostram-se mais determinadas, mais resolutas e mais autossuficientes.

Como isso se manifestará politicamente, no plano nacional? Ainda é muito cedo para dizer, mas a experiência do Irã, no início de 2009, mostra que, ao sair de uma crise nacional, é possível unir-se nacionalmente para construir uma nova direção política (no Irã, nas eleições presidenciais do ano passado, houve mudança clara de direção, mas mudança que, como os eleitores desejavam que acontecesse, acomodou-se dentro do sistema vigente).

Por que acontece assim? Os sírios dizem que o que disparou a mudança que se vê hoje, com mudança de consciência, foi a súbita percepção (generalizada na população), de que o que acontecia na Síria nada tinha a ver com reformas, democracia ou participação popular no governo; que se tratava, exclusivamente, de derrubar uma sociedade síria que existia e prosperava, para substituí-la por outra, algo distante do modo de viver dos sírios, da história social, política e cultural dos sírios.

Por hora, o foco não está em detalhes políticos (por exemplo, emendar o Artigo 8º da Constituição) – isso virá à sua hora. As pessoas sentem-se envolvidas num conflito de vida ou morte, uma guerra. E, em guerra, todas as energias concentram-se em sobreviver, viver e vencer o combate de hoje. Política é coisa para depois.

Mesa de negociações de Genebra II
O senso de luta existencial foi reforçado recentemente, por várias coisas: pelo linguajar e ações emanados dos estados do Golfo; pelo linguajar de Genebra II; pelos padecimentos dos palestinos; e, com absoluta certeza, pelos recentes eventos na Ucrânia.

Um veterano especialista em Síria disse-nos que, há duas semanas, praticamente não se ouvem discussões na Síria sobre o próprio conflito sírio: que só se fala da Ucrânia. É evidente: a Síria e o Irã (tanto no plano das discussões entre os cidadãos, quanto no plano do governo) compreenderam imediatamente e plenamente a importância dos eventos que se desenrolam na Ucrânia. Os sírios comuns conseguem muito facilmente identificar o próprio sofrimento e o sofrimento dos ucranianos e “admiram Putin por levantar-se contra as maquinações ocidentais que se veem por lá” – como disse bem claramente um sírio.

Por hora, toda a política, na Síria, condensa-se numa única demanda: a volta da vida em segurança, e a normalização da vida diária. Por isso se vê ali – como também se vê no Irã – um reposicionamento em torno do sistema existente, enquanto, simultaneamente, se articula o desejo de viver sob uma nova política. As lideranças, na Síria e no Irã parecem também compreender com clareza esse movimento, razão pela qual se veem tantos esforços para fazer avançar os processos de diálogo nacional interno e de reconciliação.
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Nota dos tradutores 
[1] Não se encontra notícia alguma sobre esse Ministério da Reconciliação na Síria, na imprensa-empresa ocidental. Mas há notícia na mídia chinesa, por exemplo, 13/2/2013, Xinhuanet: Syrian minister confirms readiness for talks with opposition (notícia do ano passado, portanto).
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[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.

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