quarta-feira, 16 de abril de 2014

Pepe Escobar: “Pé na estrada pelo sul do OTANistão”

15/4/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Vila de Bandol - vista noturna
Pé na estrada na Provence – Para citar Lênin, o que fazer? Voltar a Bruxelas e Berlim? Um encontro íntimo com o triste norte do OTANistão, consumido pela paranoia de sua obsessão anti-Rússia e escravizado pelo infinitamente expansível euro-embuste do Pentágono? Quem sabe uma excursão ao Erdogastão bêbado de guerra-à-Síria?

Nem se discute. A joie de vivre resolveu tudo; assim, esse Olhar Errante pendurou-se em Nick, Olhar-Errante-Filho, na Catalunha e, armados com La Piccolina – a caravan Peugeot 1980, motor Citroën, de Nick − metemos o pé na estrada pela Provence, mansão de restauração, no sul do OTANistão. Em vez de metermos o pé na jaca do crystal meth, foi pé na jaca non-stop no primor dos líquidos de infieis e gastronomia provençal de primeira.

Chamem de investigação subterrânea, sem saudade-de-casa, sem fossa, sobre o mal-estar econômico das nações do Club Med; a pauperização da classe média europeia; o avanço da extrema direita; e a possibilidade iminente de uma OTAN econômica. Tudo isso emoldurado por ótimo, super ótimo, um tempo com a família. E, super subversivo, com laptop e celular desligados.


Tivemos a sorte de estar lá na semana da inauguração da Fundação Van Gogh em Arles – com um notável portal e a assinatura de Van Gogh em tamanho gigante; o jardim suspenso de espelhos coloridos; e exibição estupenda da evolução cromática do pintor durante os frenéticos 15 meses que viveu em Arles. Alguns minutos de contemplação frente à La Maison Jaune [Casa Amarela] (1888) − imagem a seguiré intimar a imortalidade, revelação do que é, isso sim, ser excepcional.

La Maison Jaune (Vincent van Gogh)
Iluminações estéticas, por todos os lados – do castelo de Baux ao pôr-do-sol com um Perrier mint num terraço sobre o campo, em torno da colina de Gordes; de uma noite estrelada ao ar livre no Colorado Provençal (estranhamente, atravessado por um helicóptero militar voando baixo, estilo avançada-em-Bagdá), a discutir os méritos do “Chèvre de Banon – aquele queijo epicúreo, queijo “de exceção”, embrulhado em folhas de castanheira.

E cruzando daí para o grande canyon de Verdon – o mais norte-americano dos canyons europeus, que se ataca por várias faces, tanto pelo norte como pelo sul, incluindo uma trilha que acompanha a velha trilha romana e encontro com as silhuetas caóticas, fantasmagóricas de Les Cadieres (“cadeiras”, em provençal) – resposta de Verdon às Torres Gêmeas. Uma montagem peculiar de imagem de Osama e al-Zawahiri fazendo trilha pelo Hindu Kush.

Quando descíamos do Col de Leques, o proprietário de um café de montanha contou-nos que acabava de abrir para a temporada, que vai até meados de setembro. Mas aqui, no começo de abril, o Verdon estava banhado em silenciosa glória, exceto um ou outro ciclista, ruidoso, incômodo.

Então – como em Pierrot Le Fou de Godard – mergulho para o Mediterrâneo. Primeira parada, Toulon, controlada pelo Front National, tão limpa, tão organizada, tão assustadiça ante, até, skatistas visitantes, não imigrantes, já exibindo um navio cargueiro monstro da OTAN em plena ostentação.

É impossível comer um prato de moules [mexilhões] no porto, no meio da tarde; mas no restaurante chinês Ah-Ha há canyons de Verdon de comida, 24 horas por dia, e serve para mostrar mais uma vez que a fúria empreendedorista da Ásia já deixou a Europa a comer poeira.

Bouillabaisse (sopa de frutos do mar, típica da região de Marselha)
Corta para um banquete platônico no venerando Auberge Du Port Bandol bouillabaisse orgíaca, com o melhor vinho da casa, perfeitamente comparável a uma combinação de Bastide de la Ciselette com Domaine de Terrebrune. Nenhum desses deslumbrantes líquidos de infiel, por falar nisso, foram sequer tocados pela globalização.

Não resta um milímetro quadrado de solo não construído na costa em torno de Marselha – é parte de um bem conhecido dossiê, a destruição ambiental do sul do OTANistão. Mesmo assim, demos jeito de encontrar um canto relativamente reservado para o apropriado mood à Rimbaud (la mer, la mer, toujours recommencée) [o mood pode ser de Rimbaud, mas o verso é de Paul Valéry (em Cimetière Marin) NTs].  

Foi quando chegou o temido momento e ergueu sua cabeça feia – em Sanary-sur-Mer, onde Huxley escreveu Admirável Mondo Novo em sua Villa Huxley, e Thomas Mann andava pelo Chemin de la Colline. Brecht de fato bem pode ter cantado canções anti-Hitler de uma mesa no Le Nautique; então, depois de debater com Nick os méritos comparativos dos veleiros Beneteau, decidi, finalmente parar com tanto distanciamento brechtiano, caminhei até a banca mais próxima, comprei os jornais, pedi um café com leite e liguei o celular.

Bar-tabac Le Nautique em Sanary-sur-Mer
Que NADA me impressionou muito é dizer pouco. Uma semana fora da grade, e a mesma sarabanda de paranoia, pivoteamentos os mais frenéticos e excepcionalismo monocromático. Até que, lá estava ela, como um pérola no fundo cor de turquesa do Mediterrâneo, soterrada na info-avalanche: a notícia, a definitiva notícia, a notícia da semana, talvez do ano, talvez da década.

O presidente da Gazprom, Alexey Miller, encontrou-se com o presidente da China National Petroleum Corporation, Zhou Jiping em Pequim, na quarta-feira (9/4/2014). Estão no processo para assinar “o mais rapidamente possível” o megacontrato, para 30 anos, para fornecer à China gás natural siberiano. Provavelmente será assinado dia 20 de maio, quando Putin estará em Pequim.

Isso, sim, é material genuíno. O Oleogasodutostão encontra a parceria estratégica Rússia-China, solidificada nos BRICS e na Organização de Cooperação de Xangai, com a arrepiante possibilidade de o negócio preço/pagamento ser feito por fora dos petrodólares, a chamada “opção termonuclear”. Comparada a isso, a Ucrânia é terceiro palco.

Bem-vindos ao Ratódromo de Bruxelas

Foi na estrada, do Mediterrâneo de volta a Arles, via Aix-en-Provence: a coisa me pegou, feito um drone de Obama. Toda essa viagem, afinal, cuidou só do sublime queijo de leite de cabra envolto em folhas de castanheira em Banon, daquelas garrafas cor rosa-pétala, de vinho; em Bandol, produtores artesãos e gente da montanha que só falam de seus medos, pelos mercados das pequenas cidades e pequenos, despretensiosos chateaux. Tudo isso é, sempre, a OTAN econômica.

Queijo de leite de cabra de Banon aberto da embalagem de folhas de castanheira
O Tratado Trans-Atlântico de Livre Comércio é prioridade top do governo Obama. As tarifas já são quase desprezíveis para muitos produtos, entre os EUA e a União Europeia. Portanto, se trata, essencialmente, de o Grande Agronegócio dos EUA passar a mão nos mercados continentais (numa invasão de produtos geneticamente modificados), e de os gigantes da empresa-imprensa dos EUA, idem. Podem chamar de um pequeno adendo à Parceria Trans-Pacífico [orig. Trans-Pacific Partnership (TPP)] – o qual, para dizer numa linha, significa os EUA ocuparem a super protegida economia japonesa.

O sul do OTANistão, sim, oferece rápidas imagens de um paraíso europeu pós-histórico – um jardim de rosas Kantiano protegido contra o imundo mundo Hobbesiano, pelo Império “benigno” (a nova expressão a ser repetida e repetida, cunhada – e por quem mais seria? – por neoconservadores da cepa de Robert Kagan). Mas a principal emoção que envolve o sul do OTANistão, como vi desde o início de 2014 sucessivamente na Itália, Espanha e França, é o medo. Medo do Outro – do pobre que chega, negro ou mulato; medo do desemprego perene; medo do fim dos privilégios da classe média até recentemente tidos por garantidos; e medo da OTAN econômica – porque praticamente nenhum europeu médio confia naquelas hordas de burocratas de Bruxelas.

Já são agora nove meses que a Comissão Europeia negocia uma chamada Parceria de Comércio e Investimento [orig. Trade and Investment Partnership]. A “transparência” que cerca o que será o maior acordo de livre comércio da história do mundo, envolvendo mais de 800 milhões de consumidores, cobre King Jong-eun da Coreia do Norte de vergonha.

Todo aquele blá-blá-blá secreto dá-se em torno de eufemísticos “obstáculos não tarifários” – uma rede de normas éticas, ambientais, jurídicas e sanitárias − que protegem os consumidores, não as gigantes multinacionais. O que esses monstros querem, por sua vez, é coisa lucrativa “livre-para-todos” – que implica, só para dar um exemplo, o uso indiscriminado da ractopamina, energético para porcos, já proibido até na Rússia e na China.

Ractopamina, produto proibido por provocar doenças nos sistemas cardiovasculares, músculo-esqueléticos, reprodutivos e endócrinos em seres humanos
Assim sendo, por que o governo Obama, de repente, parece tão apaixonado por um Acordo de Livre Comércio com a Europa? Por que o Big Business dos EUA finalmente descobriu que o Santo Graal daquele pivoteamento econômico para a China nada tem, nem de santo, nem de Graal, bem feitas as contas. A coisa será sempre conduzida, lá, por parâmetros chineses – com as principais marcas chinesas se qualificando, progressivamente, para controlar a maior parte do mercado chinês.

Então... veio o Plano B: um mercado transatlântico que submeta 40% do comércio internacional às mesmas normas-amigas-do-Big-Business. Obama só faz repetir e repetir que o acordo criará “milhões de empregos norte-americanos bem remunerados”. Muito discutível, para dizer o mínimo. Mas que ninguém se engane quanto ao movimento dos EUA; Obama está pessoalmente envolvido.

Quanto aos europeus, parecem, mais, ratos tentando salvar-se pelos buracos de uma sala secreta de jogatina. Com a Agência de Segurança Nacional dos EUA a monitorar todos os telefones e telefonemas em Bruxelas, os europeus médios absolutamente não têm nem ideia de com que porrete serão espancados. O debate público sobre o acordo é verboten [alemão no original; “proibido”] para todas as finalidades práticas, para a sociedade civil europeia.

Os negociadores da Comissão Europeia só falam com lobbyistas e presidentes de multinacionais. Em caso de acontecer “volatilidade de preços” aí, pelo caminho, os fazendeiros europeus serão os maiores perdedores, não os norte-americanos, agora protegidos por uma nova “Farm Bill” [aprox. “Lei dos produtores agrícolas”].

Não surpreende que a mensagem direta e indireta que recebi de praticamente todos, no interior da Provence, seja “Bruxelas está nos vendendo em liquidação”. No final, o que desaparecerá, morrendo morte de mil talhos, é a agricultura de alta qualidade, procissões de pequenos produtores artesanais, os únicos que conhecem um savoir-faire acumulado ao longo de muitos séculos.

Assim sendo, viva os hormônios, viva os antibióticos, viva o cloro e os organismos geneticamente modificados (transgênicos). E cortem a cabeça dos pequenos produtores!

A OTAN a lançar ameaças contra a Rússia é tática muito conveniente, suja, diversionista. Deixando a Provence, com La Piccolina carregando sua carga preciosa de produtos artesanais sublimes, entendo perfeitamente a tamanha Van Goghiana ansiedade com que os locais veem chegar a futura OTAN econômica.


[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
− Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.

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