segunda-feira, 9 de junho de 2014

Obama e o desdém/desprezo ilimitado

O desdém para o desdenhável
O desprezo para o desprezível

6-8/6/2014, [*] Andrew Levine, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Governos mentem – uns aos outros e aos próprios cidadãos. Não é novidade; sempre foi assim. Não é novidade tampouco que governos tratam com desdém/desprezo os seus próprios cidadãos.

Tampouco é novidade que as “democracias” do mundo real têm pouca semelhança com as democracias que os filósofos políticos imaginam e defendem. Esqueçam a conversa de governo do, pelo e para o demos, o povo (o que se opõe às elites); esqueçam cidadãos a deliberar coletivamente sobre o que é melhor para a entidade política que eles encarnam; esqueçam até sobre procedimentos para harmonizar preferências populares em escolhas coletivas.

Atualmente, basta um país realizar eleições competitivas, para ser dito “democrático”. Sequer se exige que o tal país garanta direitos iguais para todos os seus cidadãos.

E pode acontecer de nem eleições competitivas bastarem. Ultimamente, vem sendo necessário satisfazer mais outra exigência: além de eleições, é indispensável também, para que um país seja dito “democrático”, que o resultado das eleições seja o que o “ocidente” – mais precisamente: os EUA – deseja que seja.

Por exemplo: Israel é contada como democracia – a única no Oriente Médio, como nos dizem – embora Israel negue direitos iguais aos cidadãos israelenses árabes. É uma democracia Herrenvolk, “democracia para o povo dos senhores” [2], mas é considerada democracia de bom tamanho. Entrementes, parte da Palestina ocupada, Gaza, é condenada ao estado de pária, porque ali o Hamás venceu eleições livres, justas e competitivas.

Israel é estado sem fronteiras
Onde haja eleições competitivas, os candidatos fazem a corte aos que votam. Quando a fazem, tentam não deixar ver o desprezo que sentem pelos eleitores. Mas campanhas eleitorais não duram para sempre, elas acabam. E, então, tudo volta a ser como era, e o desprezo/desdém come solto.

Personalidades no topo, e um pouco abaixo do topo, podem mudar. Mas as políticas em geral permanecem as mesmas. O desapontamento – de fato, a lástima, o arrependimento – do eleitor é pois inevitável, produto resultante do que hoje chamamos “governança democrática”.

Em regimes “autoritários”, não democráticos, os líderes mudam menos frequentemente. Paradoxalmente porém, é mais fácil para eles que para seus contrapartes “democráticos” modificar fundamentalmente suas políticas. Não acontece muito frequentemente, mas acontece. E vez ou outra acontece muito dramaticamente.

Claro que nada é congelado no tempo; inevitavelmente, as circunstâncias mudam, e as políticas acomodam-se. Políticos morrem ou perdem votos ou a simpatia popular e o poder; e, eventualmente, há derivas generacionais.

Hoje, quando o capitalismo atormenta todo o planeta, o ritmo das mudanças está mais rápido. Marx disse, em frase que ganhou fama, que “tudo que é sólido desmancha-se no ar”. Na sequência, e por gerações de ideólogos pró-capitalismo, tornou-se obsessão refutar Marx; essa obsessão, aliás, é um dos vários modos pelos quais aqueles ideólogos sempre fazem papel de bobos. Pois nem esses ideólogos são suficientemente bobos a ponto de declarar que Marx estivesse errado.

Mas é fato que cada item do tudo que é sólido e desmancha no ar desmancha-se em ritmo próprio: tudo que é sólido não se desmancha à mesma taxa. O reino da política, sobretudo nas modernas democracias, é caso a analisar. Não é imóvel e indesmanchável. Mas às vezes, parece.

É sempre o mesmo imperialismo

É especialmente verdade nos EUA; observem as vastíssimas continuidades, obscurecidas só por diferenças estilísticas, entre o governo de George W. Bush e o governo do presidente da “esperança” e da “mudança” que o substituiu na Casa Branca.

Seria muito diferente se o povo, realmente, mandasse. Mas a democracia real está enfraquecida por toda parte. O neoliberalismo é grave inimigo da democracia – efeito, mas também causa, do declínio da democracia.

O presidente Obama declarou recentemente em West Point que acredita no “excepcionalismo dos EUA” com “cada fibra” do ser dele. Sabe-se lá em que Obama estaria pensando, se é que pensava em alguma coisa, ao dizer tal frase. Só uma coisa é certa: no que tenha a ver com o declínio da democracia, a “Terra dos Livres” não é exceção e nada tem de excepcional e/ou de excepcionalismo.

Exceto talvez, em matéria de excepcionalismo, só o desprezo/desdém, extremo, extremista, que o governo dos EUA – o governo Obama – manifesta pelos cidadãos norte-americanos. Esse, sim, é excepcionalíssimo!

O peso maior desse desprezo/desdém recai sobre eleitores que os Democratas têm como votos garantidos, porque supõem que esses eleitores não teriam, mesmo, para onde fugir.

O trabalho organizado aparece no topo da lista dos desprezados/desdenhados pelo governo Obama. Para manter os Republicanos longe dos eleitores, eles dão aos Democratas serviço de servo da gleba. Dão dinheiro e meios só aos próprios servos e desperdiçam completamente os próprios recursos em campanhas eleitorais partidárias. Nada pedem em troca e, claro, nada recebem em troca. A política de Obama para o trabalho foi completamente esquecida, desprezada, desdenhada.

O desdém/desprezo que afro-norte-americanos e pessoas de outras cores de pele sofreram aparece quase sempre sob a variedade benigna celebrada pelo falecido senador Daniel Patrick Moynihan. A principal exceção é a paixão que o governo Obama tem manifestado pela deportação de trabalhadores “sem documentos”, ponto que voltarei a comentar.

EUA- Estado de Indiana - 1930
Só eleitores cujos votos não possam ser considerados completamente garantidos são alvo de desdém-desprezo um pouco menor. E se têm dinheiro e o dinheiro deles está em jogo, nesse caso, tanto melhor – para eles mesmos.

Assim se explica o fim, afinal, do comportamento de “não pergunte, não conte” e o apoio, do jeito que se viu, que o governo Obama deu ao casamento entre pessoas de mesmo sexo.

Nesses dois casos, também foi importante que as pesquisas mostrassem grande apoio àquelas duas medidas. Quando uma maioria razoavelmente grande quer que Obama faça a coisa certa, às vezes acontece de ele fazer.

Obama não é o primeiro presidente Democrata a tratar os eleitores Democratas com desdém-desprezo. O desdém-desprezo também foi norma na era Clinton. Mas é sem precedentes o muito que o governo Obama insulta a inteligência do povo dos EUA.

Bom exemplo é o post mortem das negociações entre Israel e a Autoridade Palestina, que Obama e seu secretário de estado, John Kerry lançaram e supervisionaram. A palavra de fontes oficiais e também de fontes “não identificadas” que sabem das coisas – Martin Indyk é um dos primeiros suspeitos – é que todos estão chocados, chocados, chocados, de ver o quanto os israelenses sabotaram o negócio todo.

Claro que nada é dito nesses termos – não seria diplomático, além de não ser boa “política”. E exigiria coragem moral e política, item que falta, falta, falta muito, na Casa Branca de Obama. Mas a mensagem é clara. Claro que se não estiverem mentindo e estiverem realmente chocados, seriam os únicos chocados no planeta.

Kerry não é estúpido, nem é excepcionalmente mal informado; Obama tampouco. Fossem quais fossem as razões dos dois para reiniciar negociações entre um lado que tem todas as cartas e apoio irrestrito dos EUA, e outro lado que não tem carta alguma e que o ocidente trata como se fosse o lixo do mundo, a possibilidade de as negociações serem bem-sucedidas não estava entre aquelas razões.

Não, principalmente, se o lado que tem todas as cartas não tem qualquer interesse em paz nem, caso se chegue a falar disso, em assinar qualquer tipo de acordo.

Para que as negociações fossem bem-sucedidas, Obama e Kerry teriam de apresentar a Israel alguma vantagem irrecusável. Mas isso nunca, em tempo algum, chegou sequer a ser considerado como possibilidade!

Nesse caso, por que o embuste daquelas “conversações”? A resposta mais provável é que iniciar mais um “processo de paz” pareceu ser bom meio para manter a bordo os liberais “bondosos”. A equipe-Obama queria que aqueles eleitores “bons” e “éticos” acreditassem que o governo-Obama realmente está(ria) do lado do bem!

Mas por que insultar a inteligência dos próprios eleitores, montando uma situação feita para fracassar, e depois tratar logo de se autoabsolver de qualquer responsabilidade, fingindo surpresa, “porque” Benyamin Netanyahu, o “amigo-de-infância de todos os políticos norte-americanos”, deixou Obama-Kerry na mão?!

A eugenia de Israel é igual a dos nazismo da Alemanha
A menos que sejam ainda mais idiotas do que se suspeita ou a menos que sejam absurdamente incompetentes e obcecados por ostentar a própria incompetência, só há uma explicação: é que Obama-Kerry desprezam/desdenham tanto, a tal ponto, os próprios apoiadores neoliberais deles, que nem ligam para o que dizem a eles ou para a espécie de imbecilidade que vomitam sobre eles.

E há também o Deportador-em-Chefe, a clamar que ninguém deseja mais do que ele a reforma da imigração, mas que “não vai dar”, porque os malditos Republicanos não fazem a parte deles. E assim, diz-nos Obama, ele tem de acalmá-los (assim como tem de acalmar anti-imigrantes de seu próprio partido) e não tornar vigentes as novas leis, como seus apoiadores acreditaram que ele fosse fazer, de modo a obter o apoio dos dois partidos para a grande lei de reforma que ele sonha com assinar.

Tal argumento não merece sequer um “mas... como assim?!”, que fosse. Qualquer pessoa suporia que, com as eleições de aproximando, os Democratas estariam fazendo horas extras de trabalho para conquistar os votos dos hispânicos. Mas Obama, claro, despreza/desdenha demais os hispânicos, para considerá-los votos a conquistar.

E há também a perigosa manobra geopolítica que o governo Obama parece decidido a manter, agora que as guerras Bush-Obama e as quase-secretas guerras no Iêmen, Paquistão e leste da África que Obama expandiu e reembalou, já não estão bastando para manter próspera a máquina de guerra perpétua dos EUA.

A nova estratégia é pôr-se a provocar a Rússia e a China, fomentando a instabilidade em torno desses países – exacerbando tensões linguísticas, étnicas e religiosas, onde os EUA ainda possam exacerbá-las. Grande parte desse serviço sujo é executado por Organizações Não Governamentais (ONGs); o pretexto, claro, é sempre promover a “democracia”. Aí está serviço sujo no qual os EUA são muito bons (além de terem longa prática acumulada em todo o mundo).

ONGs que corroem as democracias são sustentadas pelo imperialismo anglo-sionista
(clique na imagem para aumentar)
É claro que Obama está brincando com fogo; e dado que os grandes estrategistas norte-americanos são absolutamente sem-noção, o perigo é multiplicado por mil, várias vezes.

O que eles nos dizem, e que a imprensa-empresa deles só faz repetir, é que é tudo culpa ou de Putin ou da China – quando, é claro, a verdade é o exato contrário disso.

Eles nem dão bola. Que seja! Dirão qualquer coisa, em qualquer caso, desde que seja o que desejam que fosse, considerado só e sempre o objetivo deles, plenamente confiantes de que a imprensa-empresa nada investigará, nada desmentirá, nada desmascarará e tudo confirmará da mensagem DELES. Quanto a isso, verdade seja dita, eles não erram: no que tenha a ver com insultar a inteligência dos cidadãos e dos eleitores, Obama e sua imprensa-empresa obram sempre juntos!

E depois há também a conversa-enrolêixon de Obama sobre como os direitos de privacidade dos norte-americanos estariam protegidos sete dias por semana, 24 horas/dia, no seu governo de vigilância-total que ele – Ele, ELE, professor-ás de Direito Constitucional! – supervisiona. O mais impressionante é que Obama diz essas coisas sem beber ou cheirar NADA.

Mas, cúmulo dos cúmulos do escândalo, pièce de résistance, só a resposta que o governo Obama deu ao que disse Edward Snowden (que tentou divulgar pela imprensa-empresa as informações que tinha sobre a vigilância-total; e que a Agência de Segurança Nacional dos EUA tem registro de todas as suas tentativas).

Dado que Snowden disse o que disse em entrevista a Brian Williams da NBC, as penas dos agentes do governo Obama arrepiaram-se de medo. John Kerry, como se sabe, reagiu como brucutu: disse que Snowden que voltasse para os EUA, como macho, para encarar as consequências.

Claro. Kerry entende que macho-que-é-macho rende-se à injustiça e aos próprios bandidos aos quais criou problemas ao revelar a verdade. É o mesmo John Kerry que entende que muito-macho é ser viver mandado por aí, de um lado e para outro, feito perfeito idiota, objeto das piadinhas de outro doido, o de apelido Bibi.

Na sequência, a Agência de Segurança Nacional dos EUA declarou que efetuara busca exaustiva e só encontrara um e-mail de Snowden, o qual, nessa mensagem, só comentava algumas preocupações vagas... Que aquilo absolutamente não configurava nenhum sinal de alerta ou aviso; que Snowden, se alertava, alertava para nada.

Edward Snowden
Será que Obama mandou-os fazer o que fizeram, ou será que fizeram por sua própria conta e risco? De fato, nem faz diferença, exceto para que se determine quem, aí, despreza/desdenha mais o povo dos EUA. Como podem supor seriamente que alguém no pleno gozo das próprias faculdades mentais acreditaria neles?!

Claro: sempre souberam, todos eles, que sempre poderiam contar com a imprensa-empresa para repetir tantas vezes a história deles, tantas, tantas, que a converteriam em saber convencional. Mas no final, a verdade sobreviverá. A verdade sempre sobrevive. Mas na maioria dos casos, a verdade aparece, sim, só que tarde demais. Essa vez, com Snowden, parece ser exceção.

Apesar do muito que Obama e Kerry e Hillary Clinton e o resto desejem que as pessoas pensem que Snowden seria alma desencaminhada pedindo para ser apanhada numa mentira, não conseguirão. Está acontecendo, isso sim, bem o contrário do que esse pessoal aí deseja.

Por mais que consigam enganar tanta gente quase todo o tempo sobre a Ucrânia, enganar todos sobre Snowden está além do poder, até, da NPR (National Public Radio) e das redes de televisão a cabo (da rede Fox nem se fala, porque ninguém leva a sério aquele pessoal-lá) e dos três ou quatro jornais “de qualidade” que ainda sobrevivem, embora capengas.

Ou Obama não compreende isso ou, então, o seu desprezo/desdém por essa “gente!” [orig. folks (palavra preferida de Obama)] que ele governa é tão profundo, que ele simplesmente não dá bola alguma. Obama, à gangue dele: “insultem a inteligência dessa gente – insultem sem parar, o mais que puderem. Acááááábem com essa gente!”.

Talvez tenha assumido muito profundamente, profundamente demais, a frase de H.L. Mencken – “ninguém jamais foi à falência, por subestimar a inteligência do povo dos EUA”...

Ou então, vai-se ver, o desprezo/desdém que Obama sente por todos que não sejam ricos & canalhas é tão poderoso, tão enraizado nele, que ele simplesmente não consegue controlar-se.

Mas desprezo/desdém é faca de dois gumes.

Num dos versos dos “Provérbios do Inferno” de William Blake, lê-se que o desprezo/desdém é ambiente invisível, imperceptível, para o desprezível/desdenhável, como o mar para o peixe, e o ar para a ave. Obama acha que se aplica(ria) ao povo que ele governa – sobretudo aos bobalhões, idiotas, tolos, bons & éticos bem-intencionados que votaram nele e o elegeram.

Mais cedo ou mais tarde, Obama aprenderá, para seu desconsolo e desilusão, que se aplica também a ele mesmo.

Notas dos tradutores

[1] Orig. “Contempt to the Contempible”. É fragmento de verso de William Blake (1757-1827) em The Marriage of Heaven and Hell (c. 1790), “Provérbios do Inferno”: “Como o ar para o pássaro, ou o mar para o peixe, assim o desprezo para o desprezível” (tradução de José Antônio Arantes. São Paulo: Iluminuras, 1987. Há edição bilíngue recente disponível: William Blake. Poesia e prosa selecionadas. S.P., Nova Alexandria, 1993).

[2] Sobre o conceito, ver LOSURDO, Domenico, A “democracia para o povo dos senhores”, no passado e no presente.
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[*] Andrew Levine é professor sênior do Institute for Policy Studies, e autor de THE AMERICAN IDEOLOGY (Routledge) e POLITICAL KEY WORDS (Blackwell), bem como de muitos outros livros e artigos em filosofia política. Seu livro mais recente é In Bad Faith: What’s Wrong With the Opium of the People. Foi professor de Filosofia) na University of Wisconsin-Madison e professor pesquisador (filosofia) na University of Maryland-College Park. Foi também co-autor de Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion (AK Press).

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