domingo, 11 de janeiro de 2015

O retorno do blasfemo

8/1/2015 , Jacques-Alain Miller (enviado à redação de Point às 11h; publicado em edição especial da revista datada do sábado, 10/1/2015; 
distribuído pela lista lacan.dot.com; 
e-mail: lacanadmin@lacan.com , fr. e ing. [1]])
Traduzido para português pelo pessoal da Vila Vudu



--BLASFÊMIA! Você desenhou o rosto de Maomé!
--Não é o rosto é o pinto dele!
--Ah! OK, mas estou de olho...
Diz-se: “São bárbaros”. Sem dúvida. Mas esse terrorismo não é cego: tem os olhos abertos, é focado no alvo. E já nem mudo é! Ele grita: “Vingamos o Profeta Maomé!”.

No final do século XX, imaginávamos que nossos conceitos como blasfêmia, sacrilégio, profanação já não passassem de vestígios de tempos passados. Não, nada disso. Temos de constatar que a era da ciência não apagou o senso do sagrado, que o sagrado não é um arcaísmo. Claro que tampouco o sagrado é real.

[O sagrado] É, isso sim, um fato de discurso, uma ficção, mas fato de discurso e ficção que mantêm coesos os signos de uma comunidade, a chave-mestra de sua ordem simbólica.

O sagrado exige reverência e respeito. Se faltam, é o caos. Se faltam, Sócrates é convidado a beber cicuta. Nunca, jamais, em lugar algum, desde que há homens e mulheres e todos falam, foi lícito dizer tudo.

A não ser na psicanálise, experiência muito especial, explosiva, e que apenas engatinha. A não ser nos EUA, mas a liberdade de manifestação garantida pela Constituição é, lá, limitada por um sentimento bem particular da decência.

Por isso a grande maioria da imprensa-empresa absteve-se de reproduzir as caricaturas de Maomé, por sentimento profundo de respeito ao “grande sofrimento dos muçulmanos”. Vale o mesmo princípio para o que se chama “politicamente correto”.

O afeto doloroso assinala que a libido está mobilizada, em jogo. Se o sagrado não é real, o gozo que se condensa no sagrado, ele, é real.

O sagrado mobiliza êxtases e furores. Morre-se e mata-se por ele. Psicanalistas sabemos ao que nos expomos quando tocamos, no outro, no “impossível-de-suportar” [Lacan: “l’impossible-à-supporter”].

Por isso Baudelaire cita Bossuet, “O Sábio sempre que ri, treme”, e atribui ao cômico uma origem diabólica.

Ora, quem foi o principal operador das Luzes, se não o riso? Maistre fala do “rictus” de Voltaire; Musset, de seu “sorriso atroz”. As doutrinas da tradição não foram refutadas, observa Leo Strauss, foram expulsas pelo riso.

Charlie Hebdo existia entre nós como a rocha-testemunha desse riso fundante. Ninguém jamais prometeu a Cabu, Charb, Tignoux, Wolinski que seriam autorizados a posar ao lado do Cavaleiro de la Barre. Desde 1825, ninguém nunca mais tentou, entre nós, franceses, restaurar qualquer lei sobre a blasfêmia.

Cavaleiro de la Barre
(clique na imagem para aumentar)
Como é possível pois que tenham morrido como mártires da liberdade de manifestação?

Aconteceu, porque os universos de discurso que antes eram separados e estanques, agora se comunicam. São mesmo imbricados: agora, o sagrado de uns e o “nada-sagrado” de outros estão conectados, são antípodas.

A menos que se rebobine o filme dos tempos modernos, deportando para longe os alógenos, a questão – questão de vida ou morte – será descobrir se o gosto do riso, o direito de ridicularizar, o nenhum-respeito iconoclasta são assim tão essenciais ao nosso gozo, quanto é essencial ao gozo na tradição islâmica a submissão ao Um.

Quanto ao debate jurídico, é complexo, todo o conjunto das democracias ocidentais trabalham sobre isso (ver, sobre isso, o sumário, publicado há três meses pela Universidade da Califórnia: Profane : Sacrilegious Expression in a Multicultural World).

Todos os anos, desde 1999, negocia-se na ONU essa questão, por iniciativa da Organização da Cooperação Islâmica, na Alemanha, Áustria, na Irlanda, procurando leis que tornem proscritos os atentados ao sagrado.

O Reino Unido esperou até 2008 para suspender a proteção que dava à Igreja Anglicana contra a blasfêmia. A França distingue-se pelo rigor de sua doutrina laica. Por quanto tempo ainda? Não se sabe. Hé, la France ! Teu café desertou, fugiu da luta. O que mais queres, mesmo, mais verdadeiramente, França? Conflito ou concessão?

Nota dos tradutores:

[1] Versões enviadas pelo autor

The return of blasphemy - By Jacques-Alain Miller (translated by Patrick Pouyaud)

It is said: ' they are barbarians. ' without doubt. However, this terrorism - there is no blind, he has the eyes open, it is Targeted. It is also not mute. He shouts: We have avenged the prophet mohammed! '

We imagined at the end of the last century that concepts such as blasphemy, sacrilege, sacrilege Were that the remains of the time spent. There is nothing. We must find that the age of science has not done faint the meaning Of the sacred ; that the sacred is not a archaism. Without doubt is - it nothing real. It is a fact of speech, a fiction, but the one that makes hold together the signs of A community, the cornerstone of his order symbolic. The sacred requires reverence and respect. Otherwise it is chaos. Then socrates is invited to drink hemlock. Nowhere, never, ever since he got men and who speak, it Was lawful to everything.

Except in psychoanalysis, very special experience, explosive, which is only in its infancy . except in the united states, but freedom of speech guaranteed by the constitution is there Bounded by a particular sense of decency. That is the way that the vast majority of the press abstained from reproduce the mohammed cartoons Out of respect for the ' great suffering ' muslims. Same principle for the ' politically correct '. The affect painful pointed out that the libido is at stake here. If the sacred is not real, enjoyment, there is a microcosm of, it, the ' is. The sacred mobilizes ecstasies and wrath. We kill and die for him. A psychoanalyst knows what is when we chatouille in others the ' impossible - to - bear ' ( lacan ). That is why baudelaire quote bossuet, ' the wise do not itl that in tremblant ', And assigns the comic an origin diabolical. Or, what was the largest operator of lights, otherwise the laugh? Maistre speaks of the ' rictus ' of voltaire, musset of his ' hideous smile '. The doctrines of the tradition were not refuted, note leo strauss, but hunted by the laughter.

Charlie hebdo was among us as the butte - witness to this derision founder. Cabu, charb, tignoux, wolinski, were not promised to living with the knight of the Bar. Since 1825, no one has ever attempted in us to restore a blasphemy law . how are they come to perish in martyrs of the freedom of the press? Is that of the universe of speech once separated and seal, now communicate. They are even intertwined, so that the sacred of one and the ' nothing sacred ' On the other are the opposite. Except to rewind the film of modern times in deporting alien everywhere, the subject - matter of life Or death - will be whether the taste of laughter, the right to make a fool of, the Disrespect iconoclaste, are also key to our way to enjoy that is the submission to the One in islamic tradition.

As to the legal debate, it is complex, and now works all the western democracies ( see In this regard the sum published there are three months by the university of california, profane: Sacrilegious expression in a multicultural world ). Every year since 1999, we are negotiating at the united nations on the subject, Initiative of the organization of the islamic cooperation in germany, austria, in ireland, Laws prohibit the violations of the sacred. The united kingdom waited 2008 to stop protecting the church of england of blasphemy. France is distinguished by the rigour of his doctrine secular. For how long? This is not writing. Hey, france! Your coffee fout the camp. What do you want the most really? Conflict or compromise?


Le retour du blasfeme, par Jacques-Alain Miller (original)

On dit : «  Ce sont des barbares. » Sans doute. Cependant, ce terrorisme-là n’est point aveugle, il a les yeux ouverts, il est ciblé. Il n’est pas non plus muet. Il crie : « On a vengé le prophète Mohammed ! »

On imaginait à la fin du siècle dernier que des notions comme le blasphème, le sacrilège, la profanation, n’étaient que des vestiges du temps passé. Il n’en est rien. On doit constater que l’âge de la science n’a pas fait s’évanouir le sens du sacré ; que le sacré n’est pas un archaïsme. Sans doute n’est-il rien de réel. C’est un fait de discours, une fiction, mais celle qui fait tenir ensemble les signes d’une communauté, la clé de voûte de son ordre symbolique. Le sacré exige révérence et respect. Faute de quoi c’est le chaos. Alors Socrate est invité à boire la cigüe. Nulle part, jamais, depuis qu’il y a des hommes et qui parlent, il n’a été licite de tout dire.

Sauf en psychanalyse, expérience très spéciale, explosive, qui n’en est qu’à ses débuts. Sauf aux Etats-Unis, mais la liberté de parole garantie par la Constitution s’y trouve bornée par un sentiment bien particulier de la décence. C’est ainsi que la grande majorité de la presse s’abstint de reproduire les caricatures de Mahomet, par égard pour la « grande souffrance » des musulmans. Même principe pour le « politiquement correct ». L’affect douloureux signale que la libido est ici en jeu. Si le sacré n’est pas réel, la jouissance qui s’y condense, elle, l’est. Le sacré mobilise extases et fureurs. On tue et on meurt pour lui. Un psychanalyste sait à quoi on s’expose quand on  chatouille chez autrui « l’impossible-à-supporter » (Lacan). C’est pourquoi Baudelaire cite Bossuet, « Le Sage ne rit qu’en tremblant », et assigne au comique une origine diabolique. Or, quel fut le principal opérateur des Lumières, sinon le rire ? Maistre parle du « rictus » de Voltaire, Musset de son « hideux sourire ». Les doctrines de la tradition ne furent pas réfutées, note Leo Strauss, mais chassées par le rire.

Charlie Hebdo était parmi nous comme la butte-témoin de cette dérision fondatrice. Cabu, Charb, Tignoux, Wolinski, n’étaient pas promis à voisiner avec le chevalier de La Barre. Depuis 1825, personne n’a jamais tenté chez nous de restaurer une loi sur le blasphème. Comment en sont-ils venus à périr en martyrs de la liberté de la presse ? C’est que des univers de discours jadis séparés et étanches, désormais communiquent. Ils sont même imbriqués, alors que le sacré de l’un et le « rien de sacré » de l’autre sont aux antipodes. Sauf à rembobiner le film des temps modernes en déportant partout les allogènes, la question – question de vie ou de mort - sera de savoir si le goût du rire, le droit de ridiculiser, l’irrespect iconoclaste, sont aussi essentiels à notre mode de jouir que l’est la soumission à l’Un dans la tradition islamique.

Quant au débat juridique, il est complexe, et travaille maintenant l’ensemble des démocraties occidentales (voir à ce sujet la somme publiée il y a trois mois par l’Université de Californie, Profane : Sacrilegious Expression in a Multicultural World). Tous les ans depuis 1999, on négocie à l’ONU sur le sujet, à l’initiative de l’Organisation de la Coopération islamique En Allemagne, en Autriche, en Irlande, des lois proscrivent les atteintes au sacré. Le Royaume-Uni a attendu 2008 pour cesser de protéger l’Eglise anglicane du blasphème. La France se distingue par la rigueur de sa doctrine laïque. Pour combien de temps encore ? Cela n’est pas écrit. Hé, la France ! Ton café fout le camp. Que veux-tu le plus vraiment ? Conflit ou compromis ?

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