quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Novo fascismo “soft”? Europa e a razão delirante


10/2/2015, [*] Laurent de Sutter, Libération
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

É tempo de abrir os olhos: as autoridades que estão hoje no comando da Europa encarnam uma nova modalidade de fascismo. Não é mais o fascismo manifesto e assumido, que fez do século XX um dos maiores do horror político; trata-se, isso sim, de um fascismo mole e lábil, que dissimula suas más intenções por trás de uma linguagem que parece racional. Mas a razão que manifestam todos que, hoje, se veem obrigados a discutir com o Primeiro-Ministro grego Alexis Tsipras é, na realidade, uma razão delirante. E é razão delirante em vários planos.

Primeiramente, a razão europeia é delirante no plano político: cada novo gesto encenado pelas autoridades europeias (e também, para completar, o gesto do diretor do Banco Central Europeu, Mario Draghi) exibe sobretudo desprezo pelos princípios sobre os quais a razão deve-se basear. Ao proclamar que os tratados europeus são imunes a qualquer voto ou desejo democrático, o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, nem tentou ocultar coisa alguma: a democracia não passa de palavra vazia na Europa.

Falava de uma realidade jurídica (é verdade que os tratados são negociados entre estados, não entre populações), o que não impediu que sua fala soasse como fala de renegado: não, a Europa não pertence a vocês, povos da Europa – tampouco pertence aos governos que vocês elegeram, se esses governos não marcharem no ritmo em que queremos vê-los marchar. Essa a mensagem que Juncker quis divulgar – e todos ouviram.

A inspiração de Mário Draghi
Em segundo lugar, a razão europeia é delirante também do ponto de vista econômico: o que as autoridades europeias estão fazendo é, simplesmente, a ruína de um continente inteiro. Ou, ainda pior: é a ruína da população de um continente inteiro – e bem quando a riqueza global da Europa, enquanto entidade econômica, não para de crescer.

As autoridades econômicas europeias, enquanto se esforçam para matar no ovo o programa grego, e o plano de impecável racionalidade econômica de Yanis Varoufakis, afirmam precisamente essa razão econômica delirante, e sem meias palavras.

Àquelas autoridades, o que interessa é perpetuar o status quo do financismo, no qual o capitalismo em seu formato mais desencarnado e mais maníaco, só produz riqueza abstrata. Já não importa àquelas autoridades que a riqueza da Europa beneficie seres humanos; em vez disso, é cada vez mais importante que a riqueza mude de mãos, circulando cada vez mais só entre poucas mãos. Mas o que não passa pela cabeça daquelas autoridades é que, ao desequilibrar de modo tão radical o sistema econômico europeu, aquelas autoridades correm o risco de destruir o próprio sistema capitalista, como não se cansam de repetir tantos analistas financeiros. Porque, afinal de contas, já nem se trata realmente de capitalismo, sequer, mesmo, de economia: trata-se de poder, de pura, violenta imposição de poder.

Em terceiro lugar, a razão europeia é delirante do ponto de vista da própria razão. Por trás de diferentes apelos para ser “razoável”, que o governo grego está tendo de ouvir, oculta-se de fato a ânsia para conseguirem submeter a Grécia à loucura mais completa.

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Porque a razão à qual se referem os políticos europeus (por exemplo, para justificar as ensandecidas medidas de arrocho [orig. austérité] que impõem aos cidadãos) repousa sobre um conjunto de axiomas que servem perfeitamente para definir a loucura. São axiomas que, para começar, mandam apagar o princípio de realidade. Só assim se cria a condição básica para que a razão das autoridades europeias possa continuar a girar no vazio, sem contato algum com o que esteja acontecendo no mundo concreto.

Na sequência, é preciso recusar também qualquer princípio de coerência−consistência. Só assim se mantêm em pé os argumentos usados para fundamentar o que as autoridades europeias querem decidir e decidem. Esses argumentos são apresentados, de fato, também para enterrar definitivamente qualquer anseio de coerência−consistência. (Basta considerar, por exemplo, a “austeridade” [de fato, é arrocho], apresentada como se fosse racional do ponto de vista econômico, quando todos sabemos que nada tem de racional).

Trata-se por fim de recusar o princípio do contraditório – o fato de que sempre se pode voltar aos fundamentos das decisões tomadas e rediscuti-los – ideia que tem suscitado até agora as reações mais histéricas entre as autoridades europeias.

É preciso contestar, interrogar, esse delírio generalizado, que as autoridades europeias manifestam.

O fascismo europeu não foi completamente derrotado na IIa. Guerra Mundial
Por que aí está, exposto tão desavergonhadamente aos olhos do mundo? Por que continua a fingir que tem razões (racionais) a apresentar a seu favor, quando já se viu que suas razões não são razões, já não têm sentido algum? Quando já se sabe que não passam de palavras ocas, slogans furados e lógicas falsas, lógicas de dissimulação?

A resposta é simples: porque estamos diante do fascismo. Trata-se de dar uma cobertura ideológica puramente convencional, um discurso que se finge aceitar, ao qual se finge aderir, para, na verdade, completar outra ação. Como já sugeri acima, essa operação é operação de outra ordem: trata-se de garantir a domesticação sempre mais violenta das populações europeias – de garantir que não reagirão contra as medidas mais violentas tomadas contra elas.

Diferentes populações europeias elegeram governos que se apresentaram como democráticos – mas são governos cujo programa oculta exatamente o contrário do que mostra. São governos que trabalham contra a democracia, porque a democracia não trabalha a favor deles. Todo o resto é pretexto.

Ora, o que o novo governo grego tenta fazer é reintroduzir um pouco de realismo, no inverossímil, irracional delírio político e econômico em que a Europa está afogada – vale dizer: introduzir ali um pouco de democracia. Mas ao fazê-lo, o novo governo grego desmascarou a extensão da escroqueria, da fraude, que governa os outros países do continente. Isso os escroques nunca lhe perdoarão.
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[*] Laurent de Sutter é um escritor belga francófono. Pesquisador de Teoria do Direito na Wetenschappelijk Onderzoek da Vrije Universiteit Brussel; ensina nas Faculdades Saint-Louis (Bruxelas) e é Pesquisador Honorário Visitante Escola de Direito Cardozo (New York). Dirige a coleção “Perspectivas Críticas” na editoria da Presses Universitaires de France.
Nasceu em Bruxelas em 24/12/1977. Fez os primeiros estudos no Colégio Dom Bosco (Bruxelas), Iniciou seu curso de Direito na Universidade de St. Louis (1995-1997) e complementou na Universidade Católica de Louvain (1997-2000). Ingressou no curso de mestrado em  Teoria Jurídica na Academia Europeia de Teoria do Direito (2000-2001); em seguida, cursou Sociologia do Direito na DEA Paris II Panthéon-Assas (2001-2002). Integrou a equipe de pesquisa da Vrije Universiteit Brussel, projeto IAP.
Desde 10/1997, aos 20 anos, trabalhou na revista pop-rock Rif-Raf durante 10 anos; sete anos como colunista e três anos, como titular do “Cosy Corner”. Publicou, em revistas como Tapin, textos pertencentes ao campo da poesia contemporânea. Escreveu pastiche no Journal de l’oeuvide publicado on-line pela Tapin. Publicou ensaios em vários jornais, incluindo o jornal Pylon, que recebeu seu primeiro texto crítico sobre a pornografia.

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